O erro de Bagão Descartes

Este é seguramente um daqueles erros que o ministro das finanças se irá arrepender para sempre. É público na blogosfera, que me enquadro dentro da política de direita, mas já aqui, defendi tomadas de posição da mesma, e já aqui tomei posições diametralmente opostas, sustentadas de uma forma coerente e construtiva.

Para mim ser apoiante de um governo, ou ser oposição ao mesmo, foge ao claro desígnio nacional de criticismo e de caça as bruxas. Para mim nem sempre o que o líder diz se transforma em parábola bíblica, nem o agitar de bandeiras agita o céu que me rodeia. Mais importante que tudo isso é a competência. E quando alguém que está do meu lado não é competente, o caminho só pode ser aquele que na mitologia levava às portas do Sol.

Da mesma forma defendi, com unhas e dentes, a operação de securitização durante meses a fio, sob o ponto de vista não só de antecipação de receitas que de outra forma a inepta máquina fiscal portuguesa nunca conseguiria cobrar, como da necessidade óbvia do governo em arranjar receitas extraordinárias capazes de colocar o défice abaixo dos 3,00%. No fundo a importância e a credibilidade de cumprir.

Da mesma forma que aqui quando a ministra Ferreira Leite, disse que desconhecia alguns factos referentes à titularização, eu senti-me um advogado do diabo. Da mesma forma que defendo que Portugal poderia ter ficado sem punição, se quebrasse o PEC devido a recessão económica que atravessou e de acordo com a legislação em vigor, sou um adepto rigoroso da verdadeira consolidação orçamental.

Hoje, e depois de ontem ter ouvido Bagão Felix, afirmar na RTP...

Vou utilizar os dividendos da venda da Galp como receita extraordinária


... senti-me um crente sem um "Deus" para venerar.

As afirmações acima carecem de rigor por parte de Bagão Félix e porque eu peço sempre factura onde vou, já que se todos pagarmos, todos pagamos menos, decidi consultar o manual de contas públicas do sistema europeu – vulgo SEC 95 e pedir a factura.

O Negócio... O Estado alienou através da Parpública, a parte que a ENI Spa detinha (33,34%) detinha na GALP e esventrar a petrolífera nacional do negócio do gás, criando para esse efeito a empresa EDP Gás.

O SEC levanta assim quatro hipóteses nas vendas de activos...

  • As administrações públicas vendem por si próprias acções ou outras participações que detêm numa empresa. Diz-se que esta venda é directa.
  • As administrações públicas possuem uma empresa A (geralmente, uma sociedade holding) - esta empresa vende acções ou outras participações que possui numa empresa B e devolve os resultados da venda às administrações públicas. Diz-se que esta venda é indirecta.
  • As administrações públicas vendem activos não financeiros que possuem. Diz-se que é uma venda directa de activos não financeiros.
  • As administrações públicas possuem acções ou outras participações numa empresa A - esta empresa vende activos não financeiros e devolve os resultados da venda às administrações públicas. Diz-se que é uma venda indirecta de activos não financeiros.

Parece consensual que a GALP Energia se trata de um activo não financeiro. Como o negócio envolve a Parpública, torna-se indirecto. E assim caímos na opção de venda indirecta de activos não financeiros.

A venda indirecta de activos não financeiros tem de ser inteiramente registada nas contas financeiras das administrações públicas e das empresas envolvidas - é uma retirada de acções ou outras participações da empresa que era, parcial ou totalmente, detida pelas administrações públicas, tendo, como entrada de contrapartida, um aumento de um activo financeiro.

Ou seja, não tem qualquer efeito nas necessidades de financiamento das administrações públicas. Ou seja não conta para efeitos de redução do défice.

Mas esta Venerável Loja, numa missão didáctica, vai ensinar, já que pelos vistos o senhor ministro parece desconhecer, como contabilizar a operação da GALP Energia. Certamente mais um serviço público, que não nos coibimos de prestar, não vá Bagão Félix à luz das suas afirmações decidir contabilizar as coisas de um forma incorrecta...


Assim, a fundamentação para o tratamento das vendas indirectas baseia-se, em primeiro lugar, no facto de que o pagamento dos resultados das vendas não ser uma transferência de rendimentos, mas uma transferência de património/activos. No entanto, não pode ser considerado como transferência de capital - a definição de outras transferências de capital (SEC 95, ponto 4.165) não deixa margem para tal tratamento. Além disso, nestes casos, os pagamentos apenas são feitos devido aos direitos de propriedade que as administrações públicas têm sobre as empresas envolvidas.

A noção de dividendo nas contas nacionais é clara - trata-se de um rendimento de propriedade. Os dividendos devem resultar de fluxos de rendimentos e não da venda ou reavaliação de activos. A distribuição de rendimentos não deve diminuir o património líquido/activos líquidos da empresa. Aquilo que pode ser distribuído aos proprietários é o rendimento empresarial (SEC 95, pontos 8.26-29).

Esta é a fundamentação para se excluir das transferências de capital o pagamento dos resultados da privatização...

No entanto, as operações correspondentes a transferências para as administrações públicas dos processos de privatização feitos indirectamente (através de uma SGPS, por exemplo), devem ser registadas como operações financeiras em acções e outras participações, não tendo, por conseguinte, qualquer impacto directo sobre o nível da capacidade/necessidade líquida de financiamento das administrações públicas.

SEC 95, ponto 4.165.g

A devolução dos resultados da venda às administrações públicas diminui os activos da empresa A, o que pode ser considerado como uma liquidação parcial. A consequência é, logicamente, uma diminuição do capital próprio da empresa A.

Este tratamento da privatização indirecta pode facilmente estender-se a qualquer caso de venda indirecta de activos financeiros e ainda ao caso de vendas indirectas de activos não financeiros.

Quer dizer, facilmente não deve ser, porque Bagão Félix assim não o entendeu...

Publicado por António Duarte 17:32:00  

1 Comment:

  1. Anónimo said...
    Totalmente de acordo, caro António.

    Se o Estado faz "maquilhagens" e "malabarismos" nas suas contas, porque não hão-de os privados fazer o mesmo?

    Será legítimo concluir, então, que a evasão fiscal não é um direito dos cidadãos? Imitando o Estado?

    Relembrando aquele aforismo popular, que agora deve "martelar" na cabeça da Dra. Ferreira Leite:

    "Atrás de mim virá, quem de mim bom fará."

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