acerca do Terrorismo...
domingo, setembro 05, 2004
Passando ao lado das análises às causas relativamente às quais quase toda a gente tem opiniões firmes e precisas (e geralmente enviesadas e disparatadas) parece que por uma vez toda a gente está de acordo sobre que o que se passou em Beslam foi um acto de pura barbárie, de terrorismo puro e duro.
Infelizmente este raro consenso não parece chegar para compreender, logo combater, o que é de facto o terrorismo enquanto fenómeno. No contexto certo quase todos nós poderiamos ser "terroristas" - pelo menos no contexto em que alguns os pintam por aí - por muito que isso custe a admitir.
Ninguém pinta os actos da resistência francesa contra a ocupação nazi como terrorismo e no entanto muito do que então se fez não difere muito do que apelidamos de terrorismo convencional... O que difere então ? O que difere é a nossa percepção do que é uma causa justa ou uma causa injusta. Era nobre morrer a lutar (nem que fosse num atentado suicida) contra Hitler, é um facto. E em boa parte o drama é esse. É-nos fácil a quase todos encarar Hitler como a encarnação do mal absoluto (como o são Pol Pot, Estaline, Lenine, Mao e tantos outros) e contra esse "mal" tudo se justifica, tudo se compreende e tolera... Só que por estes dias não há males absolutos apenas causas relativas, contextualiza-se tudo, relativiza-se, contemporiza-se, porque de facto já não há referenciais morais absolutos para franjas significativas da sociedade. Não há e ponto final.
E como não há procuram-se causas, algumas das quais se adoptam por moda como se adopta um peixe ou um canário, como se a gaiola ou o aquário fossem o mesmo que o habitat natural das criaturas... É muito bonito, de bom tom até, perorar longamente sobre as condições psicológicas, sociais e económicas a montante e a jusante, mas os factos são mais duros, substantivamente mais duros. Por um lado, num Ocidente sem valores, qualquer valor, qualquer referência, por mais relativo que seja, é logo hiperbolizado e sobrevalorizado; por outro o resto do mundo não ocidentalizado, vê-se prisioneiro, refém, até cercado, por uma lógica que não controla, por um modo de vida viral que destrói, corrompe as bases de sociedades ancestrais, sem que ao mesmo tempo apareça como uma alternativa sólida e consolidada.
A democracia, o bom senso, a etiqueta e boas maneiras, como as vemos no Ocidente, não se exportam nem implantam de estaca, e é esse o drama dos nossos tempos... O grande drama, porque se o objectivo dos terroristas é impor uma nova/velha ordem, a sua lógica, o seu modus operandi é do mais moderno e sofisticado que há, como Andy Warhol, como Cicciolina o objectivo é antes de tudo chocar, só que não é sequer um chocar para chamar a atenção, é um chocar para cegar, para regar as sementes do ódio que sempre andaram por aí dispersas desde o início dos tempos...
E como se pode ver por estes dias eles - os terroristas de todas as espécies - já estão a ganhar em todas as frentes. Porque a culpa é da má gestão russa do problema tchetcheno, porque as tropas especiais russas foram incompetentes (os nossos generais e almirantes de pacotilha sob a batuta do Dr. Portas fariam certamente melhor), porque o Sr. Putin não é flor que se cheire, porque sim... Porque no fundo, no fundo, estranho mundo este, até já se acha normal, pelo menos já se relativiza e tenta contextualizar, o sequestrar mais de 1000 miúdos (e mesmo que fossem todos graúdos...) numa escola como que o desfecho pudesse ser muito diferente do que foi...
Hitler, o tal que criticava o terrorismo (mas seria então terrorismo?) da resistência francesa, deve sentir-se por estes dias vingado. Em Beslan, na Palestina, em Guantanamo, o Bem e o Mal não são valores absolutos, são meras questões relativas, de ponto de vista, questões onde os meios, todos os meios, são justificáveis porque os fins, esses já não são absolutos mas tão somente relativos...
E enquanto um conjunto básico de valores (e a Declaração Universal dos Direitos do Homem é uma boa plataforma base) não for universalmente reconhecido com tal, como valores. Como axiomas invioláveis, enquanto reinar o pragmatismo/cinismo dos fazedores da política real, o terrorismo estará cá para ficar, porque muitas vezes, e por omissão, por medo, por cobardia, por simplismo, quem legitima o terrorismo somos todos nós. Porque não há terrorismo bom e terrorismo mau, apenas causas - que se espera que sejam inequívocas - por que vale ou não a pena lutar (e até onde e por que meios será legítimo lutar?) e se queremos que este mundo tenha algum futuro, seria útil lutar pela globalização da justiça social, da literacia, por uma melhor redistribuição de recursos , etc, etc, etc, à escala global. Dissertar avulsamente sobre o resto é fazer mais terrorismo... desta vez verbal.
Publicado por Manuel 22:30:00