105 anos — Aprendamos todos com Emídio Guerreiro

Emídio Guerreiro — resistente anti-fascista, pensador e político, antigo presidente do PSD — completou, esta segunda-feira, 105 anos. Leram bem: 105 anos. Notável.

Ainda mais notável que atingir tão provecta idade é manter uma completa lucidez, um espírito crítico e aberto ao mundo, informado e interessado.

Emídio concedeu uma impressionante entrevista à PÚBLICA do passado domingo. Foi um autêntico tratado da condição humana, um testemunho vivo de mais de um século de existência.

Aprendamos, então, com aquela que será, certamente, a mais lúcida mente (raciocínio articulado, argumentos intactos, memória prodigiosa) de quem nasceu antes de 1900 (sim, é verdade: parece impossível, mas Emídio Guerreiro nasceu em 1899).

Na interessantíssima entrevista concedida a António Melo, Emídio Guerreiro retira quaisquer ilusões de romantismo sobre a velhice:

A velhice é uma espécie de condescendência da vida. Chega-se a um termo, que é aquele em que eu estou, em que já não há nada a dar. Sente-se uma espécie de vácuo. Mas é ridículo tentar filosofar aos 105 anos de idade. A meu ver é um limite máximo de vida. O que me resta são fragmentos das noções que tive quando tinha uma verdadeira vida. É um naufrágio».

Apesar das esperanças do entrevistador, Guerreiro insite na inevitabilidade da queda:
Aquilo de que tenho horror não é da morte, é da velhice. A velhice é que não suporto mais (…) Não suporto essa velhice que se agarra à vida. A parte de uma sobre-vida não é uma super-vida. Eu entendo que a partir do momento em que o homem não é senhor da sua autonomia já não vive. A velihice não permite nada. É, de facto, a antecâmara da morte

E se é ele quem o diz…

E quanto às reflexões filosóficas deixadas por Emídio Guerreiro, aqui vão algumas das que mais nos fazem pensar...
O homem nasce bom, dizia Rousseau (1712-1778), o que o torna mau é a imersão na sociedade; daí que para preservarmos a nossa identidade individual, a sociedade tenha que passar um ‘contrato social’ entre os seus membros

Hoje, o trabalhador tem condições que nem sonhava na altura (ndr: em 1917).Não havia sequer o descanso semanal. Foi a I República que instituiu o domingo como dia de descanso obrigatório. A minha avó tinha um comércio e quando se instituiu essa lei ela deitou as mãos à cabeça a dizer que ia ser a falência. Não foi

Ou ainda...

O racionalismo é uma grande descoberta da emancipação humana, permite-nos saber que somos homens». (…) «A individualidade é a marca da humanidade, pois estou convencido que não há dois homens iguais. Há sempre qualquer coisa que os faz singulares

Numa entrevista em que cita Descartes, Galileu e Rousseau; em que recorda episódios políticos e sociais do último século, Emídio Guerreiro deixou-nos um impressionante exemplo de que vale sempre a pena trabalhar o intelecto. Nenhum de nós, quase de certeza, chegará à sua idade. Aproveitemos, por isso, os seus ensinamentos.

Publicado por André 01:26:00  

2 Comments:

  1. Anónimo said...
    É um grande Homem. Gostava de saber porque é que esteve exilado e durante tanto tempo. Ademais, no 25 de Abril o Salazar já fazia tijolos no fundo da cova havia 5 anos! Uma legislatura de hoje!
    Estamos de acordo. Gostei da sua lucidez sobre o fim de uma civilização ( a nossa ), pois eu partilho a mesma ideia, há bastante tempo. E prevejo que dentro de 20-30 anos vão forçosamente ter de regressar regimes autoritários... e é isso que me preocupa. As pessoas não souberam, nem sabem, e parecem não querer, viver a liberdade. Os abusos da liberdade vão transformá-la em regimes, de novo autoritários. O fim da civilização não é só isso, é mais do que isso, mas também é isso.
    Os paradigmas, os valores, as acções --veja-se a história dos tempos e civilizações passados-- estão completamente subvertidos. Por exemplo: a democracia (de esquerda, em portugal, passou 30 anos a censurar a associação de cristãos, principalmente o rito católico, na televisão, jornais, comícios, etc.. Mas nem uma palavra em público de repúdio para com as novas seitas de "pactos com o diabo" que exercem em Portugal (e não só), que têm feito homicídios e a sacrifícios humanos e outros crimes, como é público!!!
    Quando se mata inocentes,crianças,indefesos, mulheres, homens, em nome de Alá, de Deus ou do Diabo (diabo é o espírito humano desumanizado, e nessa perspectiva existe)como nas últimas décadas, ja não falando da I e II grande Guerra, não há dúvia, que a passos largos, a nossa civilização desaparece, como a de Esparta, de Atenas, Homérica, fenícia, romana, etc. etc.
    Luís Bonifácio said...
    PAra alêm da lucidêz, gostei do facto de, embora não directamente, Emidio Guerreiro ter admitido os erros da sua juventude (1ª Républica), onde ele era apoiante do Partido (Nada) Democrático de Afonso Costa e pricipal obreiro dos 48 anos de estado novo.
    Há para aí um "jovem" de 80 anos que, com o nosso dinheiro, inventa efabulações históricas, colocando o seu pai (Figura terciária da 1ª Républica) como o Republicano mais republicano de Portugal.

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