resposta ponderada a uma blasfémia

Para uma discussão minimamente produtiva, importa estabilizarmos em bases de um mínimo denominador comum ou se se quiser, um mínimo múltiplo comum.

Por exemplo, sobre segredo de justiça, não adianta estar para aqui a arengar muito se a maioria das pessoas, mesmo as que escrevem em blogs e são formadas em direito, não tiver uma ideia precisa do que significa.

Então, entremos já por aí - o segredo de justiça, que a lei penal prevê no artigo 371º do Código Penal e 86º do Código de Processo Penal, como valor a preservar no processo penal.

Qual é o valor a preservar para que o segredo de justiça seja uma regra cuja violação implica a prática de um crime que é punido com uma peneca, entenda-se, pois não passa de dois anos de prisão ou multa? Só uma razão principal - proteger a investigação de um crime!

Rui Pereira, membro do CSMP e professor de direito, disse ontem ao DN, - como aliás muitos outros antes dele o fizeram - que o segredo de justiça serve antes do mais para proteger a investigação criminal e só depois o bom nome das pessoas. E apontou uma razão - se fosse para proteger o bom nome das pessoas, devia vigorar até ao fim e não acabar com o Inquérito. E aqui está por isso uma perplexidade que deveria deixar toda a gente de boca aberta:

Por que razões, o Bloco de Esquerda; o PS, pela boca de Almeida Santos e até o próprio Jorge Sampaio e muitos outros comentadores de jornal e da blogosfera, acham que o que se passou no caso K7, é um caso “gravíssimo”?!

Acaso, tais revelações agora tornadas públicas, mesmo que violassem o segredo de justiça, como alguns também já não se coibem em afirmar, tornando-e julgadores sumários e definitivos (como foi o caso de Almeida Santos na TV), teriam prejudicado o sucesso da investigação?!

Sendo esse o interesse essencial da manutenção do segredo, seria muito mais compreensível que todos se interrogassem se isso alguma vez sucedeu.

Mas não! O que declaram à boca cheia e sem hesitações, como se fossem os arautos e os inquisidores modernos, herdeiros de um qualquer degenerado Torquemada, é - fogo com os palradores da K7! Porquê? Porque violaram o segredo sacrosanto da justiça.

Querem lá saber se houve efectiva violação! Querem lá saber se o segredo de justiça ao ser violado prejudicou a investigação! Não! O que querem é transformar tal segredo na maior vaca sagrada que nem na Índia seria vista com bons olhos.

É uma total manipulação da opinião pública e eles próprios acabam por acreditar na balela que pronunciam e que é a de transformar o direito à honra como um valor superior áquele, trocando as voltas ao sentido da lei, sem o saberem e pouco se importarem com isso.

Por outro lado, o segredo de justiça e o modo como está definido legalmente, permite responder ao ponto 4 da argumentação do caro Carlos Abreu de Amorim.

Sobre este assunto permito-me transcrever deste local insuspeito, uma passagem esclarecedora...


Relativamente ao segredo de justiça, relembra-se o permanente sobressalto legislativo, que descredibiliza o sistema, convida à transgressão, generaliza a impunidade:- Em 1995, são introduzidas alterações ao normativo que prevê o crime de violação de segredo de Justiça – artigo 371º do Código Penal;- Em 1997, a Constituição da República consagra o segredo de Justiça, no artigo 20º, n.º 3;- Em 1998, é alterado no CPP o normativo que contempla o segredo de justiça, art.º 86º, exactamente para rectificar efeitos perversos resultantes da divulgação da existência de uma investigação, sujeita ao segredo de Justiça;- Em 2003, discute-se e pretende-se nova alteração legislativa que, a acontecer, a pretexto de uma supressão ou compressão do segredo de justiça, importará uma autêntica revolução do nosso sistema processual penal, um corte desajustado e desproporcionado com a nossa tradição jurídica, a substituição de um processo de estrutura acusatória mitigado pelo princípio da investigação oficial, por um sistema acusatório puro, desprezando-se em absoluto o nosso contexto sociológico e a nossa experiência histórica.

E principalmente, para ver e responder àqueles que agora invocam a decisão do Tribunal Constitucional sobre o dever de informação do arguido àcerca dos motivos da detenção, leia-se isto que é de... Agosto de 2003!

Antes, na fase do inquérito não detém o suspeito qualquer direito sustentável e defensável de saber as provas que contra si o MºPº vem carreando, sob pena de se colocar em causa o interesse público fundamental do Estado, qual seja o da perseguição e prevenção do crime. Nem os instrumentos internacionais que concentram os direitos fundamentais inerentes ao Ser Humano, nem a nossa CRP impõem, prevêem ou sugerem a atribuição desse direito ao arguido. Nem poderiam, porquanto isso corresponderia à anulação da própria fase de investigação, na medida em que se daria ao arguido a possibilidade de saber como se ia investigar, ou seja, que meios de prova se iriam utilizar.

Isto foi escrito por quem?! Maria Cândida de Almeida, a actual directora do DCIAP! E foi escrito porque esse era o entendimento corrente, até essa altura. Mal ou bem, era assim e a lei não o impedia! Seria uma lei bem feita? Para Carlos Abreu de Amorim e agora muitos outros que descobriram recentemente essa vertente maligna no texto legal, não era certamente.

O que se exige de uma lei, para além de ser geral e abstracta? Que seja clara! Que não permita interpretações e mais interpretações e mais interpretações.

O problema, nesse caso, não pode ser dos aplicadores do direito como pretende o inefável Figueiredo Dias! Não pode ser dos intérpretes o problema, por exemplo, de as declarações prestadas pelos arguidos na fase de Inquérito, mesmo perante juizes, nada valerem na fase de julgamento! É como se não existissem, sabiam disto?!

No caso concreto, há um artiguinho no Código de Processo Penal que obriga à produção de toda a prova em julgamento. Por exemplo, podem os arguidos do processo Casa Pia confessarem os crimes. Se no julgamento estiverem calados, a prova não conta para nada! O que disseram no Inquérito perante o juiz Rui Teixeira vale zero!

Se um homicida confessar o crime no Inquérito e se calar em julgamento e não houver mais prova, tem que ser absolvido, apesar de todos saberem que é culpado! Isto é uma lei bem feita, caro Carlos Abreu Amorim?! O problema é dos intérpretes ou do legislador?

Outra - o regime da proibição de prova que consta no Código de Processo Penal impede a utilização como prova das gravações efectudas, ou seja das K7, para que se consiga determinar se houve a tal violação do segredo de justiça! Esta lei estará bem feita?

Outra ainda...

As prescrições que assolaram o ambiente judiciário nos anos mais recentes, por causa da discrepância entre o Código Penal de 1982 e o de 1995, misturando-se neles o Código de Processo Penal de 1987, devem-se a quem, exactamente? Ao legislador e aos políticos, caro Carlos Abreu Amorim! São estas as leis bem feitas?

O nosso sistema legal judiciário em que o MP dirige o Inquérito e a PJ faz o que quer tacticamente, servirá em qualquer país europeu civilizado? Até se riem de nós. No entanto, o Carlos Abreu Amorim escreve, presumo que a sério, que terá de se separar “higienicamente” (o termo é dele...) a PJ do MP. Saberá ele do que está a falar ou é como aqueles papagaios palradores? O Proença de Carvalho, ao menos, ainda tem essa ideia ferrada há muito tempo. Porém, sempre que a defendeu, fê-lo de modo táo simplista que até me descoroçoou. Não é ali que vamos buscar ideias, certamente.

Quanto ao ponto 3 da argumentação, já o procurador geral Souto Moura respondeu hoje com toda a propriedade - o Gabinete de Imprensa não é um gabinete do procurador e se a assessora falou com jornalistas, fê-lo porque é isso que faz diariamente! Porque é que não se procurou saber isto e se crucificou a Sara Pina no altar da urgência do tomar medidas, imputando-lhe já, sem direito a qualquer defesa consistente, a prática do crime de violação do segredo de justiça, estendendo-o "à Procuradoria"? Não sejamos ingénuos...

O resto da argumentação do ponto 3 nem merece resposta, por representar um delírio de argumentação que não tem ponta por onde se lhe pegue. Contestar a natureza das funções da assessora de Imprensa, Sara Pina? Para quê? Mostrar-lhe o site da PGR em que a lei é explícita e explica como é o organigrama da PGR? Para quê? Já o fiz, aliás, e sem qualquer resultado pelo que leio.

Contestar a afirmação de que isto é tudo uma historieta, como se a PGR fosse assim uma agremiação tipo partido sem qualquer representação popular significativa, como há por aí um?

Contestar que a explicação da PGR será uma fábula, como pretende o Carlos Abreu de Amorim?

De facto, não vale muito a pena, porque para o blasfemo Carlos Abreu de Amorim, entramos já no domínio da ficção do Alice nos país das maravilhas.

Para o Carlos Abreu de Amorim a realidade não se ajusta à sua fantasia e assim, muda-se a realidade por uma mais consentânea em que apesar de não existir violação de segredos de justiça, elas aparecem por artes mágicas; apesar de não existir a tenebrosa conspiração da corporação do MP e das “ demais que controlam o sistema judicial português”, ela aparece virtualmente visível perante a prosa arrevezada do Carlos Abreu de Amorim.

Desça à terra, caro Carlos Abreu de Amorim! Olhe à sua volta - olhe para os Conselhos Superiores da Magistratura e do MP; olhe para os sindicatos dos magistrados Judiciais; olhe para o sistema de ascensão ao Supremo, que é per saltum; olhe para os códigos que temos e que nos deixam ficar mal; Olhe também para a organização interna das magistraturas, particularmente a do MP (isto é para lhe responder ao ponto sobre o corporativismo); olhe ainda para as leis orgânicas e ao modo como se dirigem os Departamentos de Acção Penal, em Lisboa, particularmente; olhe para a PJ e tente reparar na ambição que ainda têm de controlar a investigação criminal, afastando-se do MP; olhe para a formação de magistrados (nisso parece que olhou...).

Finalmente, abra bem os olhos e repare que não estou a qui a arengar corporativamente, mas apenas porque foi objectivamente injusto para com a magistratura do MP.

Ao dizer que dirigiu o seu postal à corporação do MP e às demais, imputando-lhes o odioso da responsabilidade quase exclusiva do mal que nos afecta, insultou os magistrados que a compôem e ainda atentou contra o que o Código Penal designa como crime de ofensa a Pessoa Colectiva p. e p. no artº 187 do Código Penal. Tal como Freitas do Amaral uma vez, pelo menos, na televisão, e já há alguns anos acusou o MP de ser o autor das violações do segredo de justiça, também incorre nessa infracção...

Quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar como verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofenderem a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a pessoa colectiva, instituição, corporação , organismo ou serviço que exerça autoridade pública, é punido com pena de prisão até seis meses ou multa até 240 dias.

É um crime menor, sem dúvida, mas permite que se apode de delinquente quem o pratica com má-fé. E neste momentos é o que não falta por aí. Delinquentes menores - no bestunto, entenda-se!

Faço-lhe a justiça de pensar que não será o seu caso, caro Carlos Abreu de Amorim.

Publicado por josé 00:09:00  

8 Comments:

  1. Luís Bonifácio said...
    Uma duvida pota por quem não tem grandes conhecimentos de direito:

    Se uma gravação feita sem o consentimento da pessoa "gravada" não serve como prova, como se diz ser no caso das cassetes do Correio da Manhã.
    Uma gravação de uma câmara de CCTV numa rua, que grave uma senhora a ser roubada e espancada por um meliante, também não serve como prova?
    António Balbino Caldeira said...
    Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
    António Balbino Caldeira said...
    José

    Excelente (sem sinal de exclamação porque se tornou normal, costume).

    Concordo consigo na insistência pedagógica na lei e nos factos. Todavia, os envolvidos no golpe de Estado ainda em curso, ou parte II, que irão ter réplicas sistemáticas, não estão interessados em discutir a lei nem os factos. Estão noutro limbo: o poder. Não rebatem argumentos porque não podem, nem precisam - falam mais alto, repetem a falácia e a mentira. Descaradamente. Assentes no mais corrupto e imoral jornalismo que a Europa tem - o português - e no apoio ingénuo da maioria pública de esquerda. O resultado da "tangentopoli" italiana que levou à queda do regime é muito mais difícil de atingir porque, aqui, a grande maioria dos jornalistas dos media tradionais dominantes estão do lado da pedofilia (em Itália era apenas corrupção através de financiamentos partidários).

    O combate é gravíssimo. Trata-se, como todos os informados sensatos percebem, do estertor de um regime que, apesar de moribundo, teima em resistir à Verdade e ao Povo.

    Lá pelo meu sítio continuo na trincheira.
    Anónimo said...
    1) Então estas violações do segredo de justiça não afectam a investigação?! É indiferente a um indivíduo que está a ser investigado saber que é acusado, não por uma, mas por três pessoas? A tese da cabala fica mais frágil, não? E assim pode haver tentativa de destruição de provas, perigo acrescido de fuga, perigo de usar "influências" ilícitas... Lembre-se do caso da Moderna: terá sido indiferente para a investigação ter aparecido num jornal que ia haver uma rusga na universidade no mesmo dia?!

    2) Por se ter que falar, não quer dizer que não se distinga o que se pode dizer e o que não se pode dizer a um jornalista. Sara Pina sabia que estava a cometer um erro, logo quando pediu ao jornalista para não revelar a fonte do que estava a dizer. Também teve, antes de se demitir, a oportunidade de se defender perante o PGR, a quem pediu a demissão... como se faz a um superior hierárquico, não é?
    Anónimo said...
    1) Então estas violações do segredo de justiça não afectam a investigação?! É indiferente a um indivíduo que está a ser investigado saber que é a acusado, não por uma, mas por três, pessoas? A tese da cabala fica mais frágil, não? E assim pode haver tentativa de destruição de provas, perigo acrescido de fuga, perigo de usar "influências" ilícitas... Lembre-se do caso da Moderna: terá sido indiferente ter aparecido nos jornais que ia haver uma rusga na universidade no mesmo dia?!

    2) Por se ter que falar, não quer dizer que não se distinga o que se pode dizer e o que não se pode dizer a um jornalista. Sara Pina sabia que estava a cometer um erro, logo quando pediu ao jornalista para não revelar a fonte do que estava a dizer. Também, antes de se demitir, teve a oportunidade de se defender perante o PGR, a quem pediu a demissão... como se faz a um superior hierárquico, não é?
    josé said...
    Caro anónimo:

    Em primeiro lugar, quanto a mim não houve, a priori, violação de segredo de justiça nestes casos ( do Salvado e da Sara Pina). Acho que já dei a minha opinião sobre isso e expliquei porquê. Logo, a sua construção lógica pressupondo a existência de tal violação, falha por aí.
    Quanto ao caso MOderna, é totalmente diferente o que aconteceu.
    Nessa altura, o director da PJ Fernando Negrão, hoje ministro e que já foi deputado e antes disso tinha retomado o lugar de juiz, onde a primeira sentença que proferiu foi destinada a malhar na PJ e no MP de forma desavergonhada, por causa de um investigação sobre tráfico de droga que tinha sido efectuada pela própria PJ, dizia que esse então director palrou ao Diário de Notícias de modo pavoneeiro. Disse abertamente a um dos redactores do DN, salvo erro o Ribeiro Ferreira que as investigações iam em bom ritmo e que na semana seguinte se iria proceder a buscas...isto, além de patético, determinou que o DN informasse quem quisesse no dia seguinte, que daí a dias que contassem com os esforçados inspectores da PJ a remexer em papéis, como aliás aconteceu.

    O segredo de justiça como já o escrevi mais do que uma vez, destina-se em primeiro lugar a proteger o sucesso de uma investigação, ou seja, serve para que os indiciados ou arguidos não saibam coisas que possam por em risco o êxito da investigação.
    O Fernandoo Negrão praticou assim, inequivocamente o crime em causa e a participação foi efectuada, segundo julgo, pelo próprio pgr de então, Cunha ROdrigues.
    Sabe qual foi uma das defesas que então ouvi? - QUe era mais do que evidente que se iriam efectuar buscas, logo a informação do director da PJ era inócua.

    Seja como for, o processo lá andou e em julgamento de recurso, a Relação concluiu que o arguido Fernando Negrão não podia ser condenado porque o crime e respectiva prova se baseavam em provas proibidas. Quais eram essas provas?
    Exactamente as gravações efectuadas pelo jornalista e que nesse caso até parece que o próprio Fernando Negrão tinha conhecimento que estavam a ser gravadas, pois a conversa foi ouvida por um alta voz, na redacção do jornal. Nem isso adiantou para a condenação pelo crime indiciado. Relação dixit. O caso de agora nem sequer é idêntico em todos os aspectos porque quanto a mim, nem sequer há crime de violação de segredo de justiça.

    Quantoo à segunda parte, a resposta é NÃO.
    Carvalho Negro said...
    Se isso é violar o segredo de justiça, o que dizer de Saldanha Sanches que informou Ferro que estava a ser investigado, de Simões de Almeida, etc?
    zazie said...
    boa pergunta, Carvalho Negro. Também me saltou à vista a história. Fiquei sem perceber e intrigou-me.

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