Magistrados - A "Capitis Diminutio"

Foi recebido o seguinte postal de um Cidadão, devidamente identificado, como se costuma dizer nos jornais e como tal se publica...


Nos palácios da Justiça construídos no tempo do estado totalitário que subjugou o povo português durante décadas, a Justiça é, impressivamente,representada por uma mulher que, simbolicamente, tem os olhos vendados.

Como não vou a inaugurações, desconheço se, em democracia, se continua a construir tribunais onde o símbolo se não transfigurou em homem ou mulher de olhos bem abertos, ao mundo e ao povo.

Aquele significado primitivo, penso eu, que sou de boa-fé, atirava-nos para a ideia de que os juízes julgavam independentemente, seja lá quem for, mas ainda para outra ideia bem perversa e que era a de que os magistrados estavam em redomas, fechados, sem interesses sociais ou políticos, alheios ao mundo. A lei sagrada, imutável e eterna tudo comandava, sem dó nem piedade ...
dura lex sed lex...


Algumas perversidades geradas no absolutismo de Salazar, mantêm-se, embora, diga-se em abono da verdade, ora disfarçadas de respeitos por "hierarquias", "venerandas instituições" e "venerandas personagens" de relevo. São os intocáveis, os que olvidam que, em democracia, tudo e todos estamos em regime de prova.

Reporto-me, aqui, à liberdade de expressão, de pensamento e de crítica, as mais elementares liberdades que resultam de tudo quanto é texto internacional e interno sobre direitos, liberdades e garantias.

Aos magistrados não está vedado que se pronunciem sobre os comboios que se atrasam, sobre esse desígnio nacional de grandeza tamanha que é o Euro, sobre temas comezinhos da vida quotidiana e mesmo judiciária.

Mas, atenção!, nem tudo lhes está permitido tratar publicamente, com desaforo, com assombro, mesmo que com a cobertura de todos os textos legais.

É preciso contenção, cautela e nem tudo pode ser dito, mesmo que com todas as mesuras. Sempre que se referem a quem "manda", os magistrados baixam logo de cidadãos com independência e isenção para pequenos servos sem qualquer garantia de pronúncia livre.

A espada do Estatuto fica pendente, o processo disciplinar espreita e, sobretudo, é, desde logo tido, como um igual que é desigual - a seu tempo pagará, na hora da promoção, na hora da inspecção, na hora da comissão para isto ou para aquilo. As pessoas devem ter perfil e este é incompatível com quem tem opiniões discordantes com o poder. O poder é muito sensível, exactamente por que o é e supõe, como os políticos, que sempre o será. Tem vocação perene.

É que, nos dias de hoje, o "lápis azul" assumiu formas mais maquiavélicas de riscar as opiniões diversas.A ameaça velada, o sorrizinho amarelo, o passar à frente, a encomenda para o silêncio, o vê lá no que te andas a meter.

A democracia para os magistrados é ainda adolescente, sempre que em causa estão os poderes vira deslealdade, falta de consideração, grave falta de respeito.

Há, evidentemente, os comunicadores tradicionais e de serviço que, como é público, são os defensores institucionais de tudo quanto manda. Aí, a liberdade de expressão é total, sem margens, absoluta. Pudera, não beliscam nada. Até dão um certo ar democrático ao poder que, com ar condescendente, vai demonstrando os seus alicerces democráticos, aceitando democraticamente as críticas para "melhoria" do sistema e de dentro do sistema.

Se, porém, as observações críticas e discordantes vão tocar pontos nevrálgicos, questionam o funcionamento deste ou daquele órgão, questionam a democraticidade disto ou daquilo colocando em causa certas personalidades, é o cabo dos trabalhos. As margens estão a ser ultrapassadas e é preciso calar este tipo. E "este tipo" começa a medir tudo quanto é palavra, a exercer auto-censura, não vá uma coisa insignificante ser entendida como difamação, com as consequentes acções penais e disciplinares.

Já vi na televisão um professor de direito constitucional, alta e merecidamente cotado, defender o silêncio dos magistrados, a pretexto da sua discrição e arrumo nas salas de audiência dos tribunais. Uma concepção que nega aos magistrados a cidadania naquele sentido em que esta define todos os homens como iguais em dignidade e devendo ser tratados como iguais, apesar das diferenças.

Vivem, assim, os magistrados numa dialéctica de "dentro" e de "fora", constrangidos por "dentro" e vigiados de "fora". Por dentro, pelas hierarquias com as manifestações mais diversas de poder tendencialmente
autocrático, de fora porque o tecido social deles exige, pela força das mensagens do poder, uma conduta estranha à cidadania, assim lhes coartando as liberdades básicas de um estado democrático, como a liberdade de expressão e crítica.

Da conjunção de tudo, resulta que, no geral, os magistrados são cidadãos de segunda, quando, aparentemente, e mesmo pelas funções que exercem, deveriam ser os primeiros a emprestar o exemplo do exercício cabal da cidadania.


Cidadão

Publicado por josé 13:42:00  

1 Comment:

  1. Gomez said...
    Caro Cidadão, não se rale. Há processos que são uma honra. Este não pode ser "o tempo em que os homens renunciam" aos deveres de consciência e aos desafios da cidadania.

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