"Desastres naturais"
sexta-feira, março 26, 2004
Na decisão instrutória do processo da queda da ponte de Entre-os-Rios, que vitimou dezenas de pessoas, o Juiz de Instrução decidiu que os arguidos não deveriam ser submetidos a julgamento, essencialmente e segundo palavras do próprio, por terem sido “causas naturais as responsáveis directas pela queda da ponte”!
Em 04/03/2001, à noite, caiu a ponte, por derrocada de pilares, arrastando na queda alguns veículos, incluindo um autocarro. Morreram 59 pessoas.
Em 9 de Outubro de 2001, a Comissão Parlamentar de Inquérito, concluiu que a queda da ponte ficou a dever-se à “descida do leito do rio na zona do quarto pilar”.
Em 11 de Novembro de 2002 o Ministério Público deduziu acusação contra seis técnicos da JAE.
O Tribunal de Castelo de Paiva é um tribunal de competência genérica que pertence ao círculo judicial de Penafiel.
No Tribunal de Castelo de Paiva, à semelhança da maioria dos tribunais portugueses e com excepção dos de Porto, Lisboa, Coimbra e Évora, não existem tribunais de Instrução criminal.
Então como se faz?!
Normalmente, como é uma comarca de competência genérica, faz-se assim...
Segundo o artº 77 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, de 1999, compete-lhe, neste caso,
“1 - Compete aos tribunais de competência genérica:
(...)
(...)
b) Proceder à instrução criminal, decidir quanto à pronúncia e exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito, onde não houver tribunal ou juiz de instrução criminal;”
Segundo diz o artº 79 da mesma lei, os tribunais de Instrução criminal servem para...
- Compete aos tribunais de instrução criminal proceder à instrução criminal, decidir quanto à pronúncia e exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito.”
Como não há tribunal de Instrução, também não há juiz de dedicado a isso. Mas há um juiz de competência genérica, em princípio. Ou devia haver...
Se não houver,como se faz, então em Portugal, para “desenrascar”?!
Nos termos do artigo 131 daquela lei, faz-se assim...
Se não houver,como se faz, então em Portugal, para “desenrascar”?!
Nos termos do artigo 131 daquela lei, faz-se assim...
“Juízes de instrução criminal
1 - Nas comarcas em que não haja tribunal de instrução criminal, pode o Conselho Superior da Magistratura, sempre que o movimento processual o justifique, determinar a afectação de juízes de direito, em regime de exclusividade, à instrução criminal.”
E pronto!
Está resolvido o “juiz natural”!
Que é, segundo a mesma lei, equiparado a juiz de círculo!“Artigo 130
Equiparação a juiz de círculo
Equiparação a juiz de círculo
- O preceituado no artigo anterior aplica-se à nomeação dos juízes dos tribunais (...) de instrução criminal referidos no artigo 80.º.
- Os juízes a que se refere o número anterior são equiparados, para efeitos remuneratórios, a juízes de círculo."
E como é que se escolhem os juizes de círculo?
Assim...
"Artigo 129.º
Juízes de círculo
"Artigo 129.º
Juízes de círculo
- Os juízes de círculo são nomeados de entre juízes de direito com mais de dez anos de serviço e classificação não inferior a Bom com distinção.
- Constituem factores atendíveis na nomeação, por ordem decrescente de preferência, a classificação de serviço e a antiguidade.
- Na falta de juízes de direito com os requisitos constantes do n.º 1, à nomeação é aplicável o disposto no número anterior. "
Temos, por isso, no caso concreto, um juiz de Instrução criminal, nomeado pelo Conselho Superior da Magistratura para o caso concreto, numa curiosa aplicação do princípio do “juiz natural” e que deveria ter pelo menos 10 anos de experiência - e tem três!
E deveria ter classificação de serviço não inferior a Bom com Distinção.
A Associação Sindical dos Juizes bem pode berrar, como o faz hoje no Público, rasgando as vestes e denunciando a “incoerência brutal” do sistema de Instrução.
O problema continuará a ser de gestão de recursos humanos e de legislação.
Ao contrário do que defendem Costa Andrade e Figueiredo Dias que ainda ontem se manifestaram contra a alteração das leis de processo, talvez seja preciso algo mais do que meros “ajustamentos”...
Sabemos que o Inquérito, segundo o próprio Souto Moura, foi encarado pelo Ministério Público como uma pedra de toque na investigação criminal. Pela sua natural complexidade, número de pessoas a inquirir e pareces técnicos a solicitar e avaliar, o MP empenhou-se a fundo e esmerou o procedimento rotineiro.
Foi nomeado um magistrado de prestígio e créditos firmados, perante a hierarquia - Pinto Hespanhol - e foram concedidos meios. Houve magistrados por esse país que ficaram sem computadores portáteis porque eles foram consignados à equipa de investigação do procurador geral-adjunto Pinto Hespanhol.
Não foi regateado o que fosse preciso, para a investigação que produziu a acusação em 11 de Novembro de 2002, mesmo assim muito para além do prazo de oito meses, fixado na lei de processo para os Inquéritos.
De acordo com a lei processual penal, segue-se ao Inquérito, a Instrução.
E, já agora, para que serve a Instrução a seguir a um Inquérito?
Segundo o prof. Costa Andrade, hoje no Público, “a instrução é uma espécie de triagem dos processos que vão a julgamento”
Esta “triagem” é uma expressão que deu muito que falar e escrever. Toda a gente percebe o sentido corrente - selecção, escolha.
Porém, quem escreveu o Código e dois deles, foram precisamente aqueles professores de Direito de Coimbra - Figueiredo Dias e Costa Andrade – fê-lo da seguinte forma: “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou nãoi a causa a julgamento.”
Simples, não é?! Nem por isso!
Souto Moura, em 1987, escrevia em apontamentos que “A Instrução se propõe resolver um diferendo sobre factos e se não houver discordância sobre os factos, não deve haver instrução alguma.”
Porém, levanta logo a questão de saber se o “facto” é o puramento naturalístico ou também já o normativo, ou seja sobre o desvalor jurídico-penal do facto.
Porém, levanta logo a questão de saber se o “facto” é o puramento naturalístico ou também já o normativo, ou seja sobre o desvalor jurídico-penal do facto.
Souto Moura ainda acrescenta que a Instrução ”surge com a ideia de controlo do MP(...) e desenvolver-se-á normalmente como fase investigatória que também é". Sustenta que a Instrução surge como um diferendo de quem se sente “agastado” pela acusação ou arquivamento.
No fim da Instrução, segue-se um debate instrutório no qual se pretende apurar, entre os participantes, se “resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento”.
E esta é outra questão melindrosa - os critérios para se entender que esses elementos existem ou não, são os mesmos que nortearam o MP na acusação e que estão previstos no artº 283 nº2 do Código de processo Penal...
“Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena.”
Sobre esta questão, da definição do que são indícios suficientes, há rios de tinta em acórdãos quase a atingir a maioridade.
No que ao caso interessa, vemos que na Instrução, o juiz não faz um julgamento, pois este é a fase seguinte.
Limita-se a avaliar se os autos contém indícios suficientes de se ter cometido um crime, tal como o MP avalia em sede de Inquérito e segundo os mesmos critérios.
Então o que aconteceu ao processo da queda da ponte, para que o juiz de instrução entendesse que afinal, os factos recolhidos pelo MP só poderiam indiciar que a queda se deveu a causas naturais?!
De um lado, temos a equipa de investigação do MP e a recolha de indícios através de métodos excepcionais que conduziu a uma acusação para ser avaliada em julgamento. Por outro, temos a decisão solitária de um juiz de Instrução que pura e simplesmente entende, em “consciência”, que esses indícios apontam para causa naturais, na origem da derrocada e da morte de 59 pessoas.
Naturalmente, é estranho!
Publicado por josé 18:36:00
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