"Desastres naturais"

Na decisão instrutória do processo da queda da ponte de Entre-os-Rios, que vitimou dezenas de pessoas, o Juiz de Instrução decidiu que os arguidos não deveriam ser submetidos a julgamento, essencialmente e segundo palavras do próprio, por terem sido “causas naturais as responsáveis directas pela queda da ponte”!

Em 04/03/2001, à noite, caiu a ponte, por derrocada de pilares, arrastando na queda alguns veículos, incluindo um autocarro. Morreram 59 pessoas.

Em 9 de Outubro de 2001, a Comissão Parlamentar de Inquérito, concluiu que a queda da ponte ficou a dever-se à “descida do leito do rio na zona do quarto pilar.

Em 11 de Novembro de 2002 o Ministério Público deduziu acusação contra seis técnicos da JAE.

O Tribunal de Castelo de Paiva é um tribunal de competência genérica que pertence ao círculo judicial de Penafiel.

No Tribunal de Castelo de Paiva, à semelhança da maioria dos tribunais portugueses e com excepção dos de Porto, Lisboa, Coimbra e Évora, não existem tribunais de Instrução criminal.

Então como se faz?!

Normalmente, como é uma comarca de competência genérica, faz-se assim...

Segundo o artº 77 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, de 1999, compete-lhe, neste caso,

“1 - Compete aos tribunais de competência genérica:
(...)
b) Proceder à instrução criminal, decidir quanto à pronúncia e exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito, onde não houver tribunal ou juiz de instrução criminal;”

Segundo diz o artº 79 da mesma lei, os tribunais de Instrução criminal servem para...
  1. Compete aos tribunais de instrução criminal proceder à instrução criminal, decidir quanto à pronúncia e exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito.”

Como não há tribunal de Instrução, também não há juiz de dedicado a isso. Mas há um juiz de competência genérica, em princípio. Ou devia haver...

Se não houver,como se faz, então em Portugal, para “desenrascar”?!

Nos termos do artigo 131 daquela lei, faz-se assim...

Juízes de instrução criminal
1 - Nas comarcas em que não haja tribunal de instrução criminal, pode o Conselho Superior da Magistratura, sempre que o movimento processual o justifique, determinar a afectação de juízes de direito, em regime de exclusividade, à instrução criminal.”

E pronto!

Está resolvido o “juiz natural”!

Que é, segundo a mesma lei, equiparado a juiz de círculo!

“Artigo 130
Equiparação a juiz de círculo
  1. O preceituado no artigo anterior aplica-se à nomeação dos juízes dos tribunais (...) de instrução criminal referidos no artigo 80.º.
  2. Os juízes a que se refere o número anterior são equiparados, para efeitos remuneratórios, a juízes de círculo."

E como é que se escolhem os juizes de círculo?
Assim...

"Artigo 129.º
Juízes de círculo
  1. Os juízes de círculo são nomeados de entre juízes de direito com mais de dez anos de serviço e classificação não inferior a Bom com distinção.
  2. Constituem factores atendíveis na nomeação, por ordem decrescente de preferência, a classificação de serviço e a antiguidade.
  3. Na falta de juízes de direito com os requisitos constantes do n.º 1, à nomeação é aplicável o disposto no número anterior. "

Temos, por isso, no caso concreto, um juiz de Instrução criminal, nomeado pelo Conselho Superior da Magistratura para o caso concreto, numa curiosa aplicação do princípio do “juiz natural” e que deveria ter pelo menos 10 anos de experiência - e tem três!

E deveria ter classificação de serviço não inferior a Bom com Distinção.

A Associação Sindical dos Juizes bem pode berrar, como o faz hoje no Público, rasgando as vestes e denunciando a “incoerência brutal” do sistema de Instrução.

O problema continuará a ser de gestão de recursos humanos e de legislação.

Ao contrário do que defendem Costa Andrade e Figueiredo Dias que ainda ontem se manifestaram contra a alteração das leis de processo, talvez seja preciso algo mais do que meros “ajustamentos”...

Sabemos que o Inquérito, segundo o próprio Souto Moura, foi encarado pelo Ministério Público como uma pedra de toque na investigação criminal. Pela sua natural complexidade, número de pessoas a inquirir e pareces técnicos a solicitar e avaliar, o MP empenhou-se a fundo e esmerou o procedimento rotineiro.

Foi nomeado um magistrado de prestígio e créditos firmados, perante a hierarquia - Pinto Hespanhol - e foram concedidos meios. Houve magistrados por esse país que ficaram sem computadores portáteis porque eles foram consignados à equipa de investigação do procurador geral-adjunto Pinto Hespanhol.

Não foi regateado o que fosse preciso, para a investigação que produziu a acusação em 11 de Novembro de 2002, mesmo assim muito para além do prazo de oito meses, fixado na lei de processo para os Inquéritos.

De acordo com a lei processual penal, segue-se ao Inquérito, a Instrução.

E, já agora, para que serve a Instrução a seguir a um Inquérito?

Segundo o prof. Costa Andrade, hoje no Público, “a instrução é uma espécie de triagem dos processos que vão a julgamento

Esta triagem é uma expressão que deu muito que falar e escrever. Toda a gente percebe o sentido corrente - selecção, escolha.

Porém, quem escreveu o Código e dois deles, foram precisamente aqueles professores de Direito de Coimbra - Figueiredo Dias e Costa Andrade – fê-lo da seguinte forma: A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou nãoi a causa a julgamento.

Simples, não é?! Nem por isso!

Souto Moura, em 1987, escrevia em apontamentos que “A Instrução se propõe resolver um diferendo sobre factos e se não houver discordância sobre os factos, não deve haver instrução alguma.

Porém, levanta logo a questão de saber se o “facto” é o puramento naturalístico ou também já o normativo, ou seja sobre o desvalor jurídico-penal do facto.

Souto Moura ainda acrescenta que a Instrução surge com a ideia de controlo do MP(...) e desenvolver-se-á normalmente como fase investigatória que também é". Sustenta que a Instrução surge como um diferendo de quem se sente “agastado” pela acusação ou arquivamento.

No fim da Instrução, segue-se um debate instrutório no qual se pretende apurar, entre os participantes, se resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento”.

E esta é outra questão melindrosa - os critérios para se entender que esses elementos existem ou não, são os mesmos que nortearam o MP na acusação e que estão previstos no artº 283 nº2 do Código de processo Penal...
“Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena.”

Sobre esta questão, da definição do que são indícios suficientes, há rios de tinta em acórdãos quase a atingir a maioridade.

No que ao caso interessa, vemos que na Instrução, o juiz não faz um julgamento, pois este é a fase seguinte.

Limita-se a avaliar se os autos contém indícios suficientes de se ter cometido um crime, tal como o MP avalia em sede de Inquérito e segundo os mesmos critérios.

Então o que aconteceu ao processo da queda da ponte, para que o juiz de instrução entendesse que afinal, os factos recolhidos pelo MP só poderiam indiciar que a queda se deveu a causas naturais?!

De um lado, temos a equipa de investigação do MP e a recolha de indícios através de métodos excepcionais que conduziu a uma acusação para ser avaliada em julgamento. Por outro, temos a decisão solitária de um juiz de Instrução que pura e simplesmente entende, em “consciência”, que esses indícios apontam para causa naturais, na origem da derrocada e da morte de 59 pessoas.

Naturalmente, é estranho!

Publicado por josé 18:36:00  

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