Quousque tandem... abutere?

Em 1989 e 1990, no governo de Cavaco Silva, com os ministros Miguel Cadilhe e Fernando Nogueira, foi aprovada legislação para se estabelecer o Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (Dec. Lei 20-A/90 de 15 de Janeiro).

Um dos comportamentos típicos aí previstos como sendo crime de abuso de confiança fiscal era o que se descrevia no artigo 24º ...

“Quem , com intenção de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial indevida, e estando legalmente obrigado a entregar ao credor tributário a prestação tributária que nos termos da lei deduziu, não efectuar tal entrega total ou parcialmente será punido com pena de multa até 1000 dias.”

Mencionou-se no nº 3 desse artigo que era aplicável tal regime “ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal”.

Em 1993, o governo (Cavaco Silva, Braga de Macedo e Laborinho Lúcio) aprovou legislação nova e através do D.L. 394/93 de 24 de Novembro, decidiu que o assunto da fraude e abuso de confiança fiscal não ia lá só com multas e chimpou-lhe com pena de prisão até cinco anos, para tais condutas.

Nos anos que se seguiram foram muitas as empresas que em Portugal deixaram de entregar à Segurança Social, como era devido, as contribuições de 11% que descontavam aos trabalhadores.

Muitos milhões de contos ficaram mal parados e o facto era perfeitamente conhecido dos serviços e direcção da Segurança Social, centrais e regionais.

Nesses anos, porém, apenas uma ínfima parte desses devedores relapsos foram denunciados ao Ministério Público e só esse facto, de per si, deveria constituir escândalo em qualquer país civilizado, como parece estar a acontecer agora com o facto político do momento e que envolve o Ministério da Justiça. Ainda bem que assim é porque só denota evolução da consciência ético-política.

Contudo, de 1990 a 1995, os relapsos que não entregavam as contribuições à Segurança Social (os tais 11% que descontavam na fonte aos trabalhadores) tiveram ainda assim um aliado de peso nessa manobra delapidadora, a própria lei!

O tal RJIFNA de 1990 aparentemente não incluía as contribuições para a Segurança Social, apesar de falar expressamente nas tais prestações de “natureza parafiscal”.

Como é moeda corrente em Portugal, todas as leis são sujeitas ao escrutínio apertado e ao crivo miudinho do intérprete, seja o MP , seja o juiz, seja a doutrina, seja a jurisprudência. E começou a haver muito boa gente que pura e simplesmente entendeu, fundamentando em doutos pareceres e decisões de fundo, cheios de referências alemãs, que a lei não se aplicava às dívidas dos patrões à Segurança Social.

Vivemos neste estado deletério durante cinco anos! Com conhecimento óbvio dos governantes da época:

Em Junho de 1995, os governantes da ocasião – Cavaco Silva, Eduardo Catroga, laborinho Lúcio e Falcão e Cunha viram em Conselho de Ministros e assinaram o Decreto Lei nº 140/95 de 14 de Junho. Que dizia o diploma?!

Começava por ...

“O quadro sancionatório dos regimes de segurança social tem-se mostrado incapaz de prevenir a violação dos preceitos legais relativos ao cumprimento das obrigações dos contribuintes perante o sistema de segurança social.”

Passados cinco anos, descobriram a pólvora!

E o rastilho foi o alargamento do tal RJIFNA às infracções no âmbito da Segurança Social. E então aditaram o artigo 27º -A e 28º-B que diz ...

“ As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações pagas aos trabalhadores o montante das contribuições, por estes legalmente devidas, não o entregarem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social(...) serão punidas com as penas do artigo 24º”

Só nesta altura se definiu, com o rigor devido e inequívoco, que a conduta desviante apontada era crime! Cinco anos depois!

Relativamente ao escândalo que envolve o Ministério da Justiça actualmente temos que já veio a terreiro o impagável José Luis Saldanha Sanches, faroleiro de mérito, dizer alto e bom som, há crime!

Porém, um outro jurista e mediaticamente nomeado fiscalista, de seu nome Lobo Xavier, também veio defender a sua dama, Que nenni! Nem pensar!

Tirando alguns milhares de pessoas formadas em Direito em Portugal e reduzindo drasticamente tal número para algumas centenas (poucas) que perceberão realmente de direito fiscal, quem se atreve a cortar cerce e a dizer quem tem razão?! E os penalistas não terão uma palavra a dizer?! Perguntem-lhes e vão ver...

Tendo em conta a natureza da disciplina e a possibilidade plástica de a letra da lei poder dizer uma coisa e às vezes o seu contrário, já por algumas vezes ficou aqui copiada o célebre desabafo do prof. Orlando de Carvalho: “o Direito é uma aldrabice secante”. Ou será que a aldrabice não está no Direito, mas nos aplicadores?! E quem são eles e o que os move?! O interesse do jogo da cópia reside aí...

Cópia adenda ...

Em 29 de Março de 2001, sem preâmbulos explicativos ou paliativos, a Assembleia da República (et pour cause), aprova um regime totalmente novo das infracções tributárias - Lei 15/2001 de 5.6.01 - o chamado RGIT.

O artigo 107º diz assim:

"As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às insituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos nº 1 e 5 do artº 105" (prisão até três ou multa; ou até cinco anos, se o valor da prestação exceder 50 000 euros . )

Estamos nisto.

Publicado por josé 12:09:00  

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