Quem vê caras, não vê corações

Robert Louis Balfour Stevenson, nascido na Escócia em 1850, escreveu, em 1886, a obra “The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde”, uma récita, na primeira pessoa, sobre uma estranha forma de vida... dupla - e uma reflexão metafísica sobre o mal.

Este mal, a ser real, seria insuportável, pois estaríamos confrontados com um mr. Hyde que se ocultou de todos nós durante anos e a quem nos habituámos a admirar.

Do livrinho "O Médico e o Monstro e outras histórias", edição da Livraria Civilização de 1968, aqui fica um excerto:


Devo agora falar, apenas teoricamente, dizendo não o que sei, mas o que suponho ser mais provável. O lado mau da minha natureza, integrado numa nova forma corpórea, era menos robusto e menos desenvolvido que o lado bom que eu acabara de depor. Durante a maior parte da minha vida que, apesar de tudo, fora uma existência de canseiras, virtudes e recalcamentos, esse lado exercitara-se em escala bastante menor e despendera muito menos energias. Por essa razão, segundo penso, aconteceu que Edward Hyde era muito mais pequeno, mais débil e jovem que Henry Jekyll. Enquanto o rosto dum resplandecia de bondade, o do outro trazia o cunho da ignomínia. Além disso, o mal ( que eu acredito agora ser o lado fatídico do homem) imprimira já naquele corpo o estigma da deformidade e decadência.

(...)Observei que, quando exibia a forma de Hyde, ninguém podia aproximar-se de mim sem um bem visível estremecimento. Eu atribuo isso ao facto de todos os entes humanos, tal como os vemos, serem uma mistura do bem e do mal, e Hyde, único na espécie, era pura essência maligna. Demorei-me apenas um momento diante do espelho. Tornava-se necessário tentar a segunda e conclusiva experiência; certificar-me se havia perdido, para sempre, a minha identidade e, se assim fosse, nada mais me restaria senão fugir, antes de alvorecer, daquela casa que já não me pertencia.



(...) A droga não tinha um caracter específico, não era diabólica nem divina. Apenas moveu as portas do cárcere que sepultava a minha índole. E tudo quanto aí se amontoava, coagido e represado, trasbordou em liberdade. Nessa altura a minha virtude dormitava, mas a maldade, acordada pela ambição estava alerta e pronta a aproveitar uma oportunidade. E assim nasceu Edward Hyde. Por isso, ainda que eu tivesse agora dois caracteres, bem como duas aparências, um era intrinsecamente mau, e o outro, ainda o do velho Henry Jekyll, essa absurda mistura cuja reforma e aperfeiçoamento eu já desesperava de conseguir. A evolução processava-se, pois, no sentido do pior.

(...) As alegrias e prazeres que eu me apressava a procurar sob disfarce eram, como já disse, pouco edificantes e dificilmente lhes poderia aplicar um termo mais rigoroso. Mas sob a forma de Edward Hyde em breve se tornaram monstruosos. Muitas vezes, no regresso dessas excursões, mergulhava numa espécie de torpor e assombro ao meditar na minha falsidade e depravação. Este ser que eu tinha extraído da minha própria alma e libertado para a satisfação dos seus instintos, era intrinsecamente pérfido e asqueroso. Cada gesto ou pensamento o denunciava. A tortura inflingida a outrém constituía uma fonte de prazer de que ele se servia com bestial avidez, insensível como um homem de pedra! Henry Jekyll, por vezes, ficava horrorizado com as façanhas de Edward Hyde; mas a situação estava à margem das leis comuns , e a consciência, perfidamente relaxada, cobria os seus desmandos. Era Hyde afinal, e Hyde somente, o único culpado. Jekyll continuava o mesmo. Quando surgia de novo, continuava adornado das suas boas qualidades e apressava-se, onde fosse possível, a reparar o mal que Edward Hyde houvesse praticado. E assim adormecia a consciência.
Nos pormenores das infâmias em que , deste modo, eu era conivente ( pois nem mesmo agora posso admitir que tivesse sido eu a perpetrá-las), não tenho intenção de me alargar.”

Publicado por josé 23:55:00  

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