"Delenda Cartago"

A recente polémica sobre as cartas anónimas juntas ao processo da Casa Pia, e as enormidades que a esse propósito têm sido vociferadas por quem deveria ter mais tento e senso, como são os casos notórios do Bastonário da Ordem dos Advogados e até alguns professores de Direito (Costa Andrade e Vital Moreira, ambos catedráticos da Faculdade de  Direito de Coimbra) suscitam alguma reflexão recapituladora dos princípios fudadores e da legislação penal em vigor.

  • O que é e para que serve um Inquérito penal?

    Seguindo de perto as lições de Adriano Souto Moura (sim! esse mesmo!), no CEJ, em meados dos anos oitenta, o processo penal serve essencialmente para punir todos os criminosos, mas os criminosos. Para isso, o que se faz, é...
  • reconstituir um facto.
  • indagar a culpa : artigos 16º nº 2; 280; 281 e 182, todos do Código de Processo Penal.
  • tomarem-se providências cautelares, por quem tiver o dever de o fazer, nomedamente as polícias- 248 e seguintes do Código do Processo Penal
  • fazer-se um eventual pedido de indemnização cível.
  • Quem faz o Inquérito?

    "A direcção pertence exclusivamente ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia crimininal"
    artº 263º do Código do Processo Penal

    Ou seja, mais ninguém, em Portugal, pode organizar e dirigir um Inquérito Criminal.Mesmo que seja outra entidade a tomar conhecimento do facto criminoso, tem a obrigação de transmitir ao Ministério Público, no mais curto espaço de tempo, esse conhecimento.  É o que se retira do artigo 245º do Código do Processo Penal

    Isso tem uma importância fundamental, porque é num Inquérito que se investigam os crimes e vigora em Portugal o princípio da legalidade que segundo o artº 262º nº2, Código do Processo Penal “a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de Inquérito”, ressalvando-se algumas excepções que têm a ver com a actuação cautelar das polícias, ainda antes do Inquérito estar formalmente organizado e classificado, mas que obrigam estas entidades a dar conta do que fizeram, em relatório (253º Código do Processo Penal)

    Não há oportunidade legalmente consagrada para a actuação do Ministério Público.

    A única afloração desta oportunidade de actuação do Ministério Público, ou seja, o de prosseguir ou não com a acção penal, vê-se precisamente num instituto que tem sido alvo do espanto generalizado, compreensível também pelo generalizado desconhecimento destas matérias: o da suspensão provisória do processo (artº 281 Código do Processo Penal) que permite a “negociação” do Ministério Público com ofendido e arguido, em relação a delitos corriqueiros.

    Perante este quadro, que fazer quando aparece nos serviços da polícia ou do Ministério Público uma denúncia anónima?

    Deita-se fora
    , só porque não vem assinada? E com que critério de legalidade?! Poderá legitmimar-se tal comportamento apenas com base no do 164 nº 2 do Código de Processo Penal?!

    Vejamos...

    "Da prova documental

    Artigo 164.
    Admissibilidade

    1. É admissível prova por documento, entendendo-se por tal a declaração, sinal ou notação corporizada em escrito ou qualquer outro meio técnico, nos termos da lei penal.
    2. A junção da prova documental é feita oficiosamente ou a requerimento, não podendo juntar-se documento que contiver declaração anónima, salvo se for, ele mesmo, objecto ou elemento do crime."

    Basta
    ler a epígrafe do artigo para perceber logo que se refere à “prova documental” e que tal nunca pode contender com um auto de denúncia. Senão vejamos ...

  • Como começa um Inquérito?

    Vejamos o que diz a lei processual penal ...

    "CAPÍTULO I
    Da notícia do crime

    Artigo 241.
    Aquisição da notícia do crime

    O Ministério Público adquire notícia do crime por conhecimento próprio, por intermédio dos órgãos de polícia criminal ou mediante denúncia, nos termos dos artigos seguintes."

    Agora, atente-se neste artigo do Código de Processo Penal:

    "Artigo 247.
    Registo e certificado da denúncia

    1. O Ministério Público procede ou manda proceder ao registo de todas as denúncias que lhe forem transmitidas."

    Assim, o Ministério Público adquire notícia do crime por conhecimento próprio, podendo, seguindo ainda o teor daquelas lições de Souto Moura, lavrar auto de ocorrência quanto a:

    • rumores públicos.
    • delacção.
    • constatação de flagrante pelo próprio Ministério Público, caso em que deverá mesmo escreveu auto de notícia.

    É por isto que uma notícia de jornal ou um comunicado anónimo ou uma carta anónima pode efectivamente ser registada como auto de ocorrência e iniciar um Inquérito Crime, dentro da mais perfeita legalidade.

    E tem sido assim desde 1.1.1988
    .

    Isto não é novidade recente. A maior parte dos crimes de “colarinho branco” ,ou seja e dito de forma mais prosaica, de corrupção, têm sido investigados em Inquéritos desta forma e com este início: a denúncia anónima!

    O que pode, e tem, originado confusão é o entendimento que uma carta anónima denunciadora de comportamentos criminosos é um documento de prova, nos termos do artº 164 do Código de Processo Penal que diz assim...

    "CAPÍTULO VII
    Da prova documental

    Artigo 164.
    Admissibilidade

    1. É admissível prova por documento, entendendo-se por tal a declaração, sinal ou notação corporizada em escrito ou qualquer outro meio técnico, nos termos da lei penal.
    2. A junção da prova documental é feita oficiosamente ou a requerimento, não podendo juntar-se documento que contiver declaração anónima, salvo se for, ele mesmo, objecto ou elemento do crime."

    Tomando aqui uma anotação de Costa Pimenta no seu Código de Processo Penal anotado, de 1988 (logo quando saiu o diploma), o mesmo considera que podem ser juntos ao processo os documentos que contenham declaração anónima e esse documento seja elemento do crime que está em causa. Por exemplo, “a carta ameaçadora, o artigo difamatório, ou a notação técnica falsificada

Assim, tudo está em saber se a(s) carta(s) anónima(s) juntas aos autos do processo da Casa Pia configuram uma denúncia, anónima é certo, mas legítima e legitimadora da acção penal ou se configuram um documento de prova de um facto.

A impressão que fica é que não pode tratar-se de documento para prova de coisa nenhuma e sim a tal denúncia de contorno obscuro e que foi devidamente apreciada pelo Ministério Público, dentro dos poderes que lhe são próprios.

Sendo assim, como parece ser, não se compreende a indignação dos escribas e de alguns professores catedráticos, como é o caso do professor Costa Andrade, uma das maiores autoridades em processo penal em Portugal e por isso ainda mais lamentável a sua atitude se torna. Por outro lado, é público que este professor deu parecer escrito no processo , presumivelmente pago, a contrariar uma pretensão do Ministério Público e/ou do Juiz de Instrução e mesmo assim não se coibe de comentar depreciativa e publicamente as decisões tomadas em processo em segredo de justiça que ele próprio, porque interveniente, está obrigado a respeitar. Por isso, o lamento ainda é maior.



Aos poucos quem teria obrigação de fazer a diferença pela positiva, vai acicatando e atirando achas para uma fogueira cuja dimensão se começa a ver:

Delenda Cartago!

Era com esta frase que Catão, todos os dias pela manhã, convidava o Senado Romano a destruir Cartago.

Ponha-se PGR no lugar de Cartago e percebe-se a intenção.

Mesmo sem processo. E sem cabalas à vista ...

Publicado por josé 18:01:00  

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