Ana Teresa Pereira

«Costumava chamar-me anjo. Coisas que um homem diz à mulher que ama»
(Iris Murdoch)


Descobri a escrita de Ana Teresa Pereira no Verão de 1998. Estava em Lagos, em férias, e uma entrevista no suplemento cultural do «Público» despertou-me um interesse inusitado. Quem seria aquela escritora enigmática, de quem nunca tinha ouvido falar? O título destacava uma forma estranha, mas terrivelmente cativante, que decidi averiguar: «Normalmente sou vampiresca».



Já não me lembro se essa entrevista foi feita a propósito do lançamento de «A Coisa Que Eu Sou» ou se de «As Rosas Mortas». O que sei é que tive, ainda que nada tenha feito por isso, a sorte de encontrar uma entrevista concedida pela minha autora preferida. Ana Teresa Pereira raramente dá uma entrevista. Raramente aparece em público. Vive no seu mundo muito próprio, habitado por casas no meio da floresta, raparigas de cabelo ruivo, muito magras, que descobrem, numa tarde de Verão, o seu lado negro. «Normalmente sou vampiresca», dizia Ana Teresa Pereira nessa entrevista. Decidi investigar porquê.

 «— Talvez tenha a sorte de ver um vampiro. O outro sorriu. — Morcegos sim. Há muitos. Procurou algo no bolso. Estendeu um cartão a Tom. — Venha jantar connosco hoje à noite. Tom procurou qualquer coisa para dizer, mas Mantle já saíra da carruagem. O jovem seguia-a, ainda ensonado, e saltou para a plataforma. A rapariga de branco aproximou-se com passo leve e beijou Mantle na boca. Tom reconhecera-a . Era Kathleen Moore»
(«A Cidade Fantasma», Ana Teresa Pereira)


Comprei, de uma assentada, três livros dela. Ainda em Lagos, na Feira do Livro que se realiza no final de Agosto, descobri «As Rosas Mortas», «A Coisa Que Eu Sou» e «A Cidade Fantasma». Mesmo não tendo lido nada dela antes, estava seguro de que iria gostar. Aquela entrevista tinha-me ficado na cabeça. Ainda que as expectativas que criei tenham sido elevadas, confesso que a leitura desses três livros me surpreendeu. Uma descoberta literária desta qualidade passou a ser, para mim, uma revelação a explorar constantemente. Uma boa notícia a divulgar com urgência. Ana Teresa Pereira nasceu em 1958, na cidade do Funchal. É formada em Filosofia e tirou o curso na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa. Tem 45 anos e só começou a publicar aos 31, com «Matar a Imagem», um romance surpreendente para quem se estava a estrear — e que mereceu, por razões óbvias, o Prémio Caminho de Literatura Policial desse ano de 1989.

Os considerandos então tecidos pelo júri bateram completamente certo: «Ana Teresa Pereira é uma jovem escritora que mostra ser um dos nomes mais promissores da literatura policial». Os anos seguintes mostraram isso, mas muito mais. Revelaram uma escritora com um universo muito próprio, muito seu, fruto das referências que, com muita clareza, marcam o seu imaginário: os policiais ingleses, os filmes antigos, os escritores marginais, os universos paralelos...

«’O Rosto de Deus’, dissera a Marisa. E Marisa contava a história devagarinho, distante, com palavras seguras, quase como se estivesse estado lá. ‘Compreendes, quando encontramos alguém, que nos lembra o rosto de Deus, a princípio é terrível, mas depois... há só o desejo de estar com ele, de abandonar-se... Foi o que ela sentiu.»
(«O Rosto de Deus», Ana Teresa Pereira)

A escrita de Ana Teresa Pereira é assumidamente autobiográfica. E tem uma imagem-fétiche, uma obsessão que perpassa por todas as obras da autora: Iris Murdoch, a escritora irlandesa falecida há quatro anos e que escreveu tão intensamente como viveu («you can’t go through the looking-glass without cutiing yourself»). O estilo de Iris é a escola de Ana Teresa: é lá que bebe o essencial, numa relação que vai muito além de autor/leitor ou mesmo de escritora que influencia outra escritora: «— You were once adored, Iris. Tu és adorada...» (pág. 184 de «Se Eu Morrer Antes de Acordar»). Iris é Iris Murdoch, mas também é Ana Teresa Pereira, uma vez que as personagens e os textos parecem revelar a verdadeira personalidade da(s) escritora(s):

«...não havia nenhum escritor vivo que lhe fizesse falta. Ted Hughes morrera, e Marguerite Duras, a escritora que mais amava, e nenhum deles escreveria um próximo livro...»

Mas também há William Irish (Cornell Woolrich), o «poeta das sombras», precursor do «estilo noire» na literatura inglesa dos anos 40 e 50, que Ana Teresa Pereira cita constantemente («First we dream. Then we die...» e a quem vai buscar um dos seus títulos mais felizes: «If I Should Die Before I Awake (Se Eu Morrer Antes de Acordar»). Conta a escritora madeirense: «E William Irish... Eu era ainda menina quando lera If I Should Die Before I Awake. Percebi nesse momento que teria de conhecer tudo sobre ele». A imensa variedade de referências e citações faz dos livros de Ana Teresa Pereira uma colectânea de sentimentos, afectos e fruições: um poema de William Blake; um conto de Edgar Allan Poe; um quadro de Dante Gabriel Rossetti ou de Chagall; um romance de Iris Murdoch; uma aventura de Enyd Blyton; uma reprodução de Rothko; um thriller de Alfred Hitchcock (a alusão à cena do banho em «Psico» é paradigmática); um western de Nicholas Ray; um beijo no grande ecrã entre Ingrid Bergman e Cary Grant.

Ou mesmo uma manhã de Veneza; um crime numa rua escusa de Londres numa noite fria de nevoeiro; uma torre abandonada; uma caverna ao fundo das rochas com um homem muito velho lá dentro e que sorri perante o nosso medo de o encontrar; uma casa no meio da floresta; um anjo negro que habita os sonhos de uma menina feliz

«oh mom, the dreams are not so bad, it’s just that there is so much to do, and I’m tired of sleeping/ oh mom, the old man is telling me something/ his eyes are wide and his mouth is thin/and I just can’t hear what he is saying..»
Suzanne Vega, «Tired of Sleeping»

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«How can one be happy when one loves a demon?» (Iris Murdoch) Em comum há apenas um referencial: um imaginário de «algo muito antigo, algo livre e etéreo...». As histórias de Ana Teresa Pereira nunca têm uma localização precisa — com a singularíssima excepção de «Matar a Imagem», em que a acção ocorre primeiro em Lisboa e depois numa ilha que tudo aponta ser a Madeira. Claro que não é por acaso: este é o livro mais autobiográfico dela, que nasceu na Madeira, foi para Lisboa tirar o curso de Filosofia, deu aulas na capital durante alguns anos e depois voltou para a sua terra natal. Ana Teresa Pereira escreveu «Matar a Imagem» quando tinha 30 anos. Nunca mais desistiu de procurar a sua ilha encantada. De descobrir os contornos profundos da relação de Marisa e Patrícia, irmãs, delas duas com Tom (a personagem comum a todas as suas obras), deste com Carla, desta e das irmãs com Paulo e Miguel, que «aprendeu russo para descobrir o que acontecia aos lábios do menino num poema de Andrei Tarkovski» (A Linguagem dos Pássaros).

«Nasceram naquela cama. Os braços abertos, ela apertou com força os varões de ferro da cabeceira, enquanto ele os tirava de dentro do seu corpo. Como uma gata, quase não sentiu dor. Mas quando o homem começou a lambê-los, algo se quebrou dentro de si e perdeu os sentidos. Mais tarde, despertou para os seus beijos, as suas carícias, para as flores na mesa-de-cabeceira, os lençóis lavados, os dois pequenos seres deitados ao seu lado. Eram iguais, belos, silenciosos, parecidos com bichos»
(«A Coisa Que Eu Sou», Ana Teresa Pereira)


Com a tal excepção de «Matar a Imagem», as histórias de Ana Teresa Pereira passam-se num local não especificado, porque habitado por personagens intemporais e irreais, porque se repetem, nos nomes e nas formas, em momentos e livros diferentes. No limite, essas personagens são só uma. As histórias de amor entre essas personagens são quase sempre atribuladas, muito diferentes da superficialidade dos hábitos contemporâneos, porque chegam a uma profundidade para além do carnal — quase sempre vão dar à morte. «Até Que a Morte nos Separe». Nesse livro de transição numa fase que estava a ser algo repetitiva, depois de «O Rosto de Deus» e «Se Eu Morrer Antes de Acordar», Ana Teresa Pereira faz um tributo a Nicholas Ray, realizador de filmes que fazem parte das suas melhores recordações. Como também faz ‘Notorius’, de Hitckcock, filme no qual decorre a cena que dá capa ao livro. Cary Grant beija uma Ingrid Bergman esplendorosamente bela — ela, que foi talvez a mulher mais bonita da sua geração e a prolongou na geração seguinte, na sua filha, Isabella Rosselini. «Sempre gostei de histórias de solidão», escreve Ana Teresa Pereira no prólogo, onde compara a beleza dos filmes de Nicholas Ray às interpretações de Duke Ellington ou Ella Fitzegerald.

 

«Não podemos fugir... e no entanto, há momentos em que somos quase felizes, quando de olhos fechados as minhas mãos deslizam no seu rosto, num reconhecimento que tem sempre algo de milagre, quando lemos um livro juntos na cama, as faces encostadas, quando nos encontramos a nós mesmos no fundo do corpo um do outro. Somos quase felizes. Mas o fim é inevitável. Ambos o sabemos. Só não sabemos quando. Ou qual de nós o fará. ‘Tell me you still love me like I love you’. Quando o amor acabar…»
(Até que a Morte nos Separe», Ana Teresa Pereira)

Outra característica que torna Ana Teresa Pereira uma escritora especial tem a ver com a sua impressionante produção literária: 22 títulos em 14 anos! A intensidade da escrita tem aumentado ainda mais desde 1997, com uma média de dois livros por ano. Os seus livros mostram-se uma agradável sucessão de histórias obviamente relacionadas entre si, mas com um relevo e um contorno próprio. As diferentes fases de Ana Teresa Pereira podem, curiosamente, ser equiparadas às duas editoras para quem produziu quase todas as suas obras. A primeira fase, na «Caminho», data de 1989 a 1996 e caracteriza-se mais pelas influências dos policiais ingleses. Com a passagem para a «Relógio D’Água», Ana Teresa Pereira revela um estilo mais próprio, impõe muito mais o seu universo e mostra-o logo nas capas que escolhe: pinturas de mulheres jovens, de cabelos compridos e claros, ou então escuros e curtos, colhendo flores e olhando as águas do rio. Mas há ainda uma terceira fase, também na «Relógio D’Água», que não chega a ser de ruptura em relação à segunda, mas que se diferencia pela própria encadernação dos livros. É a fase iniciada com «Até Que a Morte nos Separe» e confirmada em «A Linguagem dos Pássaros» e «A Dança dos Fantasmas».

«Miguel fizera um escritório no quarto de cima da torre. Levara para lá uns quantos livros e cadernos, uma secretária, colara na parede reproduções de Rothko e fotografias a preto e branco, havia uma de Andrei Tarkovski, sentado na sua cadeira de realizador, algumas de Veneza em manhã de nevoeiro, e no lugar de honra, perto da janela, o seu ícone, os três anjos»
A Linguagem dos Pássaros, Ana Teresa Pereira»

A variedade de temas de interesse de Ana Teresa Pereira fez com que experimentasse, quase como experiência-provocação, a escrita de um western: «O Vale dos Malditos», publicado na editora Black Sun. Pensando bem, nem é assim tão estranho o gosto da escritora madeirense por westerns: são histórias de coragem, abandono e de honra, protagonizadas por heróis que não existem.
 

Conhecer o mundo de Ana Teresa Pereira é o primeiro passo para se desejar conhecer a sua obra. Ela conta:

BIBILIOGRAFIA DE ANA TERESA PEREIRA

Romances:
Matar a Imagem, 1989 (Caminho)
As Personagens, 1990 (Caminho)
A Última História, 1991 (Caminho)
A Cidade Fantasma, 1993 (Caminho)
Num Lugar Solitário, 1996 (Caminho)
Fairy Tales, 1996
A Noite Mais Escura da Alma, 1997 (Relógio D’Água)
A Coisa Que Eu Sou, 1997 (Relógio D’Água)
As Rosas Mortas, 1998 (Relógio D’Água)
O Rosto de Deus, 1999 (Relógio D’Água)
Se Eu Morrer Antes de Acordar, 2000 (Relógio D’Água)
Até Que a Morte nos Separe, 2000
A Linguagem dos Pássaros, 2001 (Relógio D’Água)
A Dança dos Fantasmas, 2001 (Relógio D’Água)
Intimações de Morte, 2002 (Relógio D'Água)
O Ponto de Vista dos Demónios, 2002 (Relógio D'Água)

Livros para crianças:
A Casa das Sombras, 1991 (Editorial Caminho)
A Casa dos Penhascos, 1991 (Editorial Caminho)
A Casa da Areia, 1991 (Editorial Caminho)
A Casa do Nevoeiro, 1991 (Editorial Caminho)
A Casa dos Pássaros, 1991 (Editorial Caminho)

Western:
O Vale dos Malditos, 2001 (Editora Black Sun)

Crónicas no suplemento «Mil Folhas», do Público
«I desired dragons...», 1 de Dezembro de 2001
«Mil Raios e Coriscos!», 29 de Dezembro de 2001
«My Lady», 26 de Janeiro de 2002
«O Tigre», 9 de Fevereiro de 2002
«Porque Só Eu Vou Morrer», 9 de Março de 2002
«O Primeiro Amor», 7 de Abril de 2002
«O sonho de Caliban», 7 de Maio de 2002
«És a Terra e és a Morte», 29 de Junho de 2002
«Outono», 28 de Setembro de 2002
«Se nos Encontrarmos de Novo», 21 de Dezembro de 2002
«A Dança», 25 de Janeiro de 2003
«Titan Blue»
«O que viram os meus olhos»
entre outras...
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Publicado por André 01:43:00  

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