Em cheio

Repegando na questão das qualificações dos nossos jovens, e dos problemas estruturais do nosso sistema de Ensino, reproduzo o excelente artigo escrito por Filomena Mónica no Público de ontem. Não podia vir mais a propósito...


«MUDAM-SE OS TEMPOS, NÃO SE MUDAM AS VONTADES»
Maria Filomena Mónica


«Como contei em anterior artigo, foi com a ajuda de uma irmã, perita em electrónica, que consegui obter os programas que desejava, o do Estudo do Meio do ensino básico (garantem-me que a edição, de 1991, está em vigor), bem como o de Língua Portuguesa dos 10º, 11º e 12º anos (homologado em 2001/02). Por hoje, fico-me pelo primeiro.

O mais impressionante para quem apenas ocasionalmente se debruça sobre estes fenómenos é a forma como, por detrás da cor política dos governantes, a ideologia pedagógica permanece inalterada. Tão ocupados andam os ministros com a gestão dos sarilhos correntes - a abertura do ano escolar, a colocação dos docentes, as pressões dos sindicatos - que não têm tempo para se preocupar sobre o conteúdo do que é ensinado.

Sei que, em outros países da Europa, as ideias pedagógicas não são muito diferentes das que por aí existem. Mas, em Portugal, instalaram-se sobre os escombros do salazarismo, o que lhes confere uma arrogância singular. Do alto das suas cátedras, os modernos doutrinadores proclamam que o ensino se deve basear nos "saberes" trazidos pelos meninos, que a sala de aula deve ser um recreio e que a escola mais não é do que a reprodução da estrutura de classes. No meu livro "Os Filhos de Rousseau" denunciei, a propósito dos exames do 12º ano, a forma como estas ideias tinham minado as escolas. De então para cá - e já lá vão seis anos - nada mudou.

O programa de ensino básico começa logo com uma mentira: "A Reforma Curricular situa-se como componente fundamental da Reforma do Sistema Educativo, concitando [sic] naturais expectativas por parte, não só de quantos se encontram envolvidos no processo educacional, como também de muitos outros e mais vastos sectores da sociedade portuguesa." Como pude constatar, quando andei em busca dos programas, nem os pais nem a sua confederação manifestam o menor interesse pelo assunto, como o atesta a presunção, nos locais para onde telefonei, de que os programas pertencem às escolas.

Eis a filosofia da educação, tal como expressa no preâmbulo: "Deste modo, também
se pretendem ver reformuladas a relação pedagógica e a metodologia do processo de ensino-aprendizagem relativamente aos padrões tradicionais. Se o apelo à participação do aluno na construção e avaliação das suas aprendizagens, ao incentivo da sua autonomia como sujeito intelectual e moral ou à dinamização das actividades criativas dos indivíduos e dos grupos não constituem propostas inovadoras face a práticas já correntes em muitas escolas, o mesmo se não pode dizer da explicitação programática destes princípios."



Não pretendo enjoar o leitor, pelo que salto por cima da retórica analfabeta, concentrando-me na disciplina estranhamente intitulada Estudo do Meio: "O meio local, espaço vivido, deverá ser o objecto privilegiado de uma primeira aprendizagem metódica e sistemática da criança, já que, nestas idades, o pensamento está voltado para a aprendizagem concreta." Em vez de se alargar os horizontes, estes são reduzidos aos que as crianças supostamente trazem de casa.

O Estudo do Meio - um território sem fronteiras que engloba a Biologia, a História, a Psicologia, a Etnografia, a Geografia, a Astronomia, a Física, a Economia e a Química - procura "contribuir para a compreensão progressiva das inter-relações entre a natureza e a sociedade". Como se isto não bastasse, atribui-se-lhe igualmente a função de formar cidadãos: "É ainda no confronto com os problemas concretos da sua comunidade e com a pluralidade das opiniões nela existentes que os alunos vão adquirindo a noção da responsabilidade perante o ambiente, a sociedade e a cultura em que se inserem, compreendendo gradualmente o seu papel de agentes dinâmicos nas transformações da realidade que os cerca." Segue-se a lista dos fins da escolaridade básica, que vai da inculcação de "hábitos de higiene" à identificação de "elementos relativos à História e à Geografia de Portugal". No subcapítulo dedicado à História, diz-se: "O âmbito de estudo da criança vai alargar-se aos outros, primeiramente aos que lhe estão mais próximos e depois, progressivamente, aos mais distantes no espaço e no tempo."

Só depois de ter lido isto fizeram sentido algumas das conversas tidas com as minhas netas. Há tempos, admirara-me o facto de a Rita, que tem oito anos, ao comentar os trabalhos de casa, me ter dito preferir os homens primitivos aos gregos. Interrogada sobre o motivo, confessou que era por serem "diferentes de nós". Noutra ocasião, notei o gozo com que tanto ela como a irmã mais nova haviam devorado "A Idade do Gelo", um DVD no qual uns mastodontes pré-históricos tentam salvar um bebé. De tal forma estão as crianças fartas do Estudo do Meio que só querem ouvir falar da Pré-História.

Como as netas frequentam uma escola que não usa manuais, decidi investigar o que a minha sobrinha andava a ler. Escrito por Isabel Guimarães, Isabel Antunes de Sá e Maria João Pinho, o manual, que se destina a alunos do 4º ano da escolaridade, intitula-se "Outros Tempos/ Outras Histórias - A História no Estudo do Meio". Sei que é difícil escrever para crianças, mas não é demais, julgo, pedir que o que se lhes oferece esteja factualmente correcto. Ora, o livro contém vários erros. Não é verdade que as cortes medievais apenas reunissem a nobreza e o clero, nem sequer é justo o que se escreve sobre o ausente povo: "Nós trabalhamos nas terras dos grandes senhores, seis dias por semana, e pagamos muitos impostos. Para nos distrairmos, apenas temos as romarias, as procissões ou algumas festas nobres importantes."

A fórmula usada para as Fichas de Trabalho, onde é suposto pôr-se um "V", de verdadeiro, ou um "F", de falso, à frente de algumas frases, mais parece saída de um concurso televisivo do que adaptada a uma sala de aula. O caso mais ridículo deste tipo de questionário vem no final: "Salazar foi: um instrumento de culinária/ presidente do Conselho de Ministros/ um realizador de cinema/ um cruzado". Igualmente bizarra é a ideia de usar textos com informações erróneas como forma de se chegar à verdade. Eis o que, a dado momento, se pede ao aluno para comentar: "D. Sebastião embarcou para a América de férias. Aí, lutou na batalha de Alcácer do Sal, da qual saiu vencedor. Regressou a Portugal, num lindo dia de sol."

Finalmente, o espaço que poderia ser dedicado à História Moderna, às invasões francesas, à guerra civil oitocentista ou ao constitucionalismo monárquico, é ocupado com a transcrição da letra do hino da Madeira, de um texto burocrático sobre a adesão de Portugal à União Europeia e de um aviso solene sobre a necessidade de, após o 25 de Abril, se fazer "um esforço comum dos cidadãos e do Estado". Num manual de 96 páginas, mais de metade versa o presente. A História, que, segundo Aristóteles, era um relato do que os seres humanos fizeram e sofreram, transformou-se num amontoado de fichas com quadradinhos, apelando à memorização, à ausência de raciocínio e à preguiça intelectual. Ora, um país que desconhece a sua História não está preparado para enfrentar crises. Como o estamos a verificar».

Publicado por André 23:54:00  

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