"A serenidade"

ou o direito à indignação

O Jornal de Notí­cias publica hoje mais um texto, que gostariamos de ter escrito, mas que é da pena assombrosa de Francisco José Viegas.


Terá o país ficado mais deprimido com a publicação da reportagem sobre a prostituição de raparigas brasileiras em Bragança, na revista "Time"?
Não me parece. O assunto é folclórico e cómico. A "Time" não acrescentou, sobre o assunto, nem mais uma vírgula em relação ao que a própria Imprensa portuguesa tinha publicado há meses tirando umas fotografias de mais qualidade e com alguma relevância erótica. A reportagem da "Time" também foi publicada em Portugal (pela "Visão"), e a "Veja", no Brasil, concedeu-lhe duas páginas delicadas e de boa qualidade jornalística. A reportagem da "Time", aliás, é jornalisticamente irrepreensível.

Ora, eu acho lamentável que se destaque a reportagem da "Time", do ponto de vista moral, e não se destaque o que é mais deplorável: o tráfico criminoso de raparigas brasileiras, submetidas a verdadeira escravatura, por "empresários portugueses" que, esses sim, deviam ser investigados.

Parece-me normal que um conjunto de raparigas brasileiras altere a vida na pacata Bragança e, dessa forma, constitua um chamariz. Já não me parece normal que a existência de proxenetas escravocratas mereça ser escondida da opinião pública. As raparigas brasileiras alegram a vida sexual dos adúlteros transmontanos; os proxenetas escravocratas são mais uma nódoa no "tecido empresarial português". Era nisso que a Imprensa também devia pensar.

O senhor presidente da República, entrevistado na televisão, foi chamado a comentar o assunto de Bragança. Qual seria a melhor reacção sobre a reportagem da "Time"? perguntaram os jornalistas. "Partir ao ataque", sugeriu o presidente.

Lembrar que os americanos também têm braganças. O "El Pais" sugere que Portugal está deprimido. Como se deve reagir? Lembrando que os espanhóis também têm as suas depressões. Isto são deduções minhas, evidentemente a partir da entrevista do presidente que, uma semana antes, tinha pedido "serenidade" aos portugueses a propósito do escândalo da Casa Pia.




Concordei em absoluto. Ainda não tinha visto a entrevista do dr. José Maria Martins, na RTP, nem a conferência de Imprensa de Catalina Pestana, nem as acusações a João Guerra, o procurador. O desejo de "serenidade", manifestado pelo presidente, é legítimo; mas interrogo-me sobre as razões profundas desse pedido. E temo que a "serenidade" tenha, na sua raiz, as mesmas motivações patrióticas ou de "marketing patriótico": dar de Portugal essa imagem cheia de paisagens bucólicas e de cientistas que investigam a malária.

Se é pelos cientistas, até estou disposto a concordar. Se é pelos proxenetas de Bragança ou pelas manigâncias de juristas apostados em atrasar, adiar e – finalmente – impedir que se apure a verdade sobre a Casa Pia, acho que devemos exaltar-nos.


Bragança e a Casa Pia não são matéria do mesmo compêndio. Bragança é cómico e folclórico (tirando o essencial, que é a existência de uma rede de tráfico de mulheres, que nos devia envergonhar).

A Casa Pia é um nome doloroso. E mais: arrisca-se a ser um nome vergonhoso. Não sei (por mais aceitáveis que ache os argumentos do senhor presidente) até que ponto poderemos manter a nossa "serenidade". Temo bastante que essa "serenidade" se confunda com a "serenidade" que permitiu que os processos anteriores fossem arquivados e que a Casa Pia se transforme no lodaçal criminoso de que hoje suspeitamos. A única maneira de regressar à serenidade é, justamente, prendendo os proxenetas escravocratas de Bragança, investigar até ao fim o drama da Casa Pia e impedir que as testemunhas do processo sejam aviltadas desta forma insane e criminosa.



Nisso, o senhor presidente tem toda a razão; mas a "serenidade" tem um preço alto e nobre.

É importante saber se a "alma portuguesa" está disposta a pagá-lo. Não há "marketing patriótico" que salve a Pátria em momentos como este.

Porque Portugal é mesmo assim.


Publicado por Manuel 01:05:00  

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