Era outra vez um País ...
quarta-feira, outubro 08, 2003
Com a vénia devida, transcreve-se o editorial de Raul Vaz, no Diário Económico de hoje.
O pior da história é a sua previsibilidade.
Excessiva para quem tenha dado alguma atenção ao episódio.
A esmagadora maioria dos portugueses apreendeu, sem esforço, o óbvio – aquilo que era e é uma prática corrente, o recurso à ‘cunha’ para contornar dificuldades, é um exemplo que também vem de cima.
Sabia-se, desde sexta-feira, a partir do momento em que o primeiro-ministro ofereceu ao país a demissão de um dos seus ministros, que faltava uma parte. Mais: conhecia-se o elo mais forte, (in)explicavelmente protegido e ironicamente o mais fraco da história.
Apesar da prática, condenável numa sociedade desenvolvida, que levou à demissão de dois ministros, o verdadeiro problema está na irresistível tentação do chefe do Governo em procurar evitar o que era óbvio.
É essa resistência no confronto com a realidade dos factos que surpreende em José Manuel Durão Barroso. O primeiro-ministro geriu a crise deixando-se levar, perdendo uma oportunidade de difícil repetição para afirmar a sua capacidade de liderança.
A adversidade oferecia-lhe o bálsamo dos grandes desafios. Bastaria resistir como já provou ser capaz, desta vez exercendo a sua liberdade, impondo a frieza à vacuidade irracional do coração. Bastaria coragem para se afirmar enquanto estadista, demitindo os dois ministros.
Durão Barroso foi pelo pior caminho: tremeu, mostrou dúvidas, quis correr o pano de um acto com um desfecho irreversível. A peça durou o tempo suficiente para um desgaste que fica. Num futuro em que a lembrança fortifique numa ideia simples: a injustiça que mancha quando se quer proteger alguém.

E vai perseguir o actor em circunstâncias mal ou bem comparáveis. Quando surgir uma dúvida sobre um comportamento, uma decisão ou um confronto, vingará a normalidade? A inquietação surge por uma razão simples: o primeiro-ministro não agiu com a exigência que impõe aos outros.
A partir de agora, sempre que surgir resistência sobre quem fez o quê e por que razão o fez, o Governo dificilmente poderá pedir aos portugueses o rigor que as circunstâncias vinham justificando.
Faltou a Durão Barroso a fibra que faz de um líder uma referência. Como faltou a dois ministros a elevação para resistir à tentação de seguir uma prática corrente mas lastimável.
É esta descida no patamar de exigência que fere Durão Barroso e fica como uma marca do seu mandato. Que poderá ultrapassar, mas será incapaz de apagar. Por estar no plano superior dos princípios.
Agora, e com a vénia devida transcreve-se o editorial de José Manuel Fernandes, no Público de hoje.
Martins da Cruz demitiu-se. Se não o tivesse feito, a sua permanência no Governo continuaria a desgastar a sua imagem, a penalizar a sua família, a perturbar o normal funcionamento do Executivo e, mais importante do que tudo, desprestigiaria ainda mais as instituições democráticas e os políticos.
No entanto, Martins da Cruz demitiu-se tarde demais: já devia ter saído na passada sexta-feira.
Desde o início que defendi que, nesta triste história, se tinha quebrado o elo mais frágil - o ministro Pedro Lynce - e resistido o elo mais forte. Caíra o ministro que escorregara na casca de banana, não o que lançara a casca de banana (ou, para sermos benévolos, deixara cair a casca de banana). Os factos revelados nos últimos dois dias sobre as circunstâncias em que, nos gabinetes do Ministério dos Negócios Estrangeiros e da Ciência e Ensino Superior, o processo foi tramitado indiciam que houve um esforço para abrir uma excepção numa situação já de si excepcional, denotando que se trabalhou, consciente ou inconscientemente, para criar uma situação de favor. Esses factos comprometem, em primeiro lugar, o Ministério de Martins da Cruz, e o comunicado labiríntico por ele ontem divulgado (e de que transcrevemos as passagens essenciais nesta edição) não ajuda, bem pelo contrário, a sacudir as dúvidas.

Independentemente das razões últimas, pessoais ou políticas, invocadas por Martins da Cruz para sair, vale a pena recapitular o que se passou para que casos semelhantes não voltem a suceder.
Em primeiro lugar, é lamentável que um ministro tenha entendido ser correcto que um seu familiar próximo fizesse um requerimento solicitando um tratamento de excepção quando ele próprio reconheceu que a situação era juridicamente duvidosa. É que existindo a mais pequena sombra de dúvida, um membro do Governo tem por dever abster-se de se colocar numa situação susceptível de gerar um tratamento de favor. Manda a prudência e manda a ética democrática.
Em segundo lugar, é intolerável que se utilize o formalismo, "sob palavra de honra", de uma declaração no Parlamento sobre ter ou não falado com o seu colega Pedro Lynce para ocultar a trapalhada dos movimentos de bastidores. Foi a verdade fáctica que iludiu a mentira crua.
Em terceiro lugar, é criticável a falta se solidariedade pessoal demonstrada sexta-feira, quando Martins da Cruz não sente que não era eticamente suportável uma situação em que ele próprio conservava a sua pasta enquanto Pedro Lynce era sacrificado.
Em quarto lugar, é censurável pôr em causa, de forma egoísta, o próprio chefe de Governo, em relação a quem Martins da Cruz devia lealdade.

Mas se estas eram as responsabilidades de Martins da Cruz, Durão Barroso também não agiu bem. Procurou, antes do mais, "controlar os danos", algo muito habitual em política. E não entendeu que, ao manter Martins da Cruz, enviava duas mensagens erradas, uma para o país, outra para dentro do seu próprio executivo.
Face ao país, Durão Barroso deixava que se instalasse a imagem - já dominante - de que "a cunha compensa". E que as "cunhas" dos poderosos valem mais do que as outras. (...)
Já dentro do Governo o primeiro-ministro corria o risco de permitir que se instalasse a convicção de que existem ministros de primeira e ministros de segunda, uns que são protegidos e outros que podem ser abandonados à sua sorte à primeira dificuldade. Para a coesão da equipa, este é o tipo de risco que um chefe de Governo nunca deve correr. (...)
Durão Barroso e o Governo acabam assim por pagar um preço político mais elevado do que se tivessem agido logo na sexta-feira.
E o país, incrédulo e ressentido, vai assistir ao espectáculo a raiar o patético de duas tomadas de posse na mesma semana.
Para terminar, e mais uma vez com a vénia devida, transcreve-se a prosa de João Paulo Guerra, no Diário Económico de hoje.
O Governo de coligação Lusíada / Moderna está de novo em apuros.
Agora, por causa de uma "cunha" que favoreceu a filha do ministro dos Negócios Estrangeiros e levou à demissão do ministro do Ensino Superior e do próprio MNE.
O caso poderia ficar encerrado com as duas demissões. Mas acontece que os novos desenvolvimentos que alteraram o desfecho desta história precisam de mais explicações. Os portugueses em geral, e os eleitos pelos portugueses em primeiro lugar, têm direito à verdade.
Não estamos a falar de uma comissão parlamentar de inquérito que, pela lógica da maioria, ainda concluía que as culpas de todo este imbróglio cabiam ao governo anterior pelo facto de não ter licenciado um curso de medicina na Lusíada. Basta uma palavra, penhor da idoneidade e do carácter de um homem. Sabemos já que não houve contacto directo entre os dois ex-ministros do Governo para favorecer o acesso à Universidade da filha de um deles. Precisaríamos de saber mais.
Se o demissionário ministro dos Negócios Estrangeiros sabia das alegadas diligências do chefe de gabinete do ministro do Ensino Superior para favorecer um seu familiar? Se o alegado convite ao chefe de gabinete do ministro do Ensino Superior para chefiar o gabinete do ministro dos Negócios Estrangeiros era uma mera coincidência? Se, não tendo havido - como não houve, palavra de honra - qualquer contacto sobre a matéria entre os ex-ministros dos Negócios Estrangeiros e o do Ensino Superior, houve algum outro contacto sobre o assunto com o próprio chefe do Governo, designadamente quando se negociou a composição do actual gabinete?

Pelas aparências deste caso, os portugueses podem convencer-se que já viram o filme todo. Mas é preciso saber toda a verdade.
E basta ver o filme "Básico" para se verificar as reviravoltas que um enredo pode levar.
Parafraseando o outro, uma sucessão de pequenos episódios com gente muito pequenina, nada de relevante portanto ...
Publicado por Manuel 09:14:00
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