O exemplo "Scooter"

Os jornais de quarta-feira, escreviam nas secções de notícias internacionais, coisas interessantes de ler, sobre um curioso veredicto de um tribunal americano: I.Lewis “Scooter” Libby, chefe de gabinete de Dick Cheney, este, por sua vez, um dos parceiros mais chegados à Casa Branca de Bush, foi considerado culpado de várias acusações que lhe poderão valer a condenação em 30 anos de cadeia!
Qual o crime hediondo para tal pena, cuja moldura nem sequer existe entre nós? Homicídio? Violação, seguida de homicídio? Não. Apenas o de perjúrio e obstrução à justiça, que na tradução portuguesa, correspondem ao falso depoimento e ao favorecimento pessoal . Por cá, tais crimes, se provados, o que aliás costuma ser raro, levam no máximo com uma pena de multa; leve e de aviso, porque a moldura só pesa até três anos de prisão, ou pesa mesmo nada se o agente se retractar a tempo.

A América, no entanto, leva muito a sério a mentira processual, em matéria criminal, porque a eficácia do sistema penal disso depende. Em Portugal, os nossos teóricos dos direitos, liberdades e garantias, acharam por bem desvalorizar esse comportamento. Assim, a mentira, falsidade e dissimulação, em sentido material e processual, bem como o encobrimento, são a regra comum e geral a que ninguém escapa, porque tal é barato, fácil e costuma render bem. Por vezes, mesmo milhões.

O caso de I.Lewis "Scooter" Libby, apresenta ainda particularidades curiosas que os jornais portugueses se dispensaram de explicar aos leitores, o que aliás se compreende, porque quem as quiser saber, vai à net, por exemplo e porque estão lá, também, as fontes dos jornalistas portugueses que sabem copiar com estilo e boa dissimulação.
Assim, com os mesmos instrumentos do plagiador, repicando aqui e ali, será possível a qualquer interessado, saber como tudo começou, neste caso fatídico para os neocons americanos. Capitaneados por W.Bush, acompanhado de Paul Wolfowitz, o meias rotas presidente do banco Mundial; ainda de Feith e de Abrams, Richard Pearle e Billy Kristol, todos actualmente se lêem, a jurar que nunca conheceram Bush e nunca foram adeptos da sua guerra preventiva. Há dois mil anos atrás, há um exemplo eloquente que se pode ler, na Bíblia.
No cerne da questão, porém, aparece os íntimos e mais notáveis neoconistas acreditados da própria vice-presidência da Casa Branca: Dick Cheney e o intelectual Karl Rove, o pequeno génio do spin, no seu papel de conselheiro de príncipes.

No final de 2002, até ao Verão de 2003, para conseguir apoio geral à intervenção preventiva no Iraque, gerou-se um pseudo-facto de assinalável relevância, transmitido à opinião pública mundial: Saddam teria negociado com o Níger, secretamente e em violação de regras internacionais, o fornecimento de urânio tipo “yellowcake”.
Essa prova de malfeitoria, seria a demonstração inequívoca do perigo iraquiano, cujo ditador teria já na sua posse, dissimuladas, algumas armas de destruição maciça.
Como é que se conseguiu elevar tal pseudo-facto à categoria de verdade sólida, acreditada por Blair, Aznar e Durão Barroso, sob sugestão de W.Bush, Cheney e os demais neoconistas ávidos de sangue de guerra?
Por informação veiculada ao mais alto nível de um discurso sobre o Estado da União, em Janeiro de 2003 e alcançada por pressão de Dick Cheney sobre a CIA, no sentido de se elaborar relatório plausível sobre a verdade da mentira e convencer os papalvos ocidentais apoiantes, os ditos cujos.
A mentirola tinha sido veiculada pelos serviços secretos italianos, do Sismi , sem confirmação dos franceses ou dos ingleses, servindo às mil maravilhas, para a discursata de W. Bush em Janeiro de 2003, na qual assegurou que Saddam era o ogre a abater, por ter comprovadamente, armas de destruição maciça.
É sabido o que os papagaios pátrios e doutras paragens, asseguraram com idêntico fervor neófito, sobre a indiscutível a asserção das armas destruidoras, justificativas da agressão.

Porém, como o diabo cobre com uma mão e destapa com as duas, o azar neoconista veio pela mala diplomática de um ex-embaixador , Joseph Wilson, enviado em Fevereiro de 2002, por alguém da CIA ao Níger. A missão, era descobrir verdades sobre as pistas avançadas pelo Sismi italiano, sobre o caso do urânio iraquiano, vindo do Níger e com enriquecimento muito desejado pelos noconistas, para sustentar a necessidade e inevitabilidade da intervenção militar em larga escala.
Wilson descobriu o logro da desejada verdade oficial, veiculada pelos italianos e acreditada pelos americanos neoconistas e seus apoiantes mundiais, crédulos e ambiciosos por ficar bem, no retrato do novo poder. Reportou em conformidade, só para concluir pouco depois que as respostas que encontrou não convinham à verdade que era preciso acalentar e apresentar à opinião pública.
Perante a denegação do seu trabalho, Wilson escreveu no New York TImes, em Julho de 2003, um artigo a dar conta da sua opinião, que era já muito fraca, acerca dos propósitos e razões para uma invasão, baseada nos seus conhecimentos práticos, adquiridos no terreno.
Joseph Wilson, para além da denúncia de uma verdadeira cabala que se delineava, descobriu assim a luzidia careca neoconista de Dick Cheney e dos demais neoconistas, ficando estes a remoer o modo de restringir danos, proteger a pele e aplicar a vingança necessária, enquanto continuavam a negar a autenticidade da informação que os desautorizava a lançar a ofensiva militar, como aliás foi lançada, com o êxito conhecido e agora renegado pelos mesmíssimos que a sustentaram.

Descobriram que Wilson tinha sido mandado para a missão, pela sua própria mulher, Valerie Plame, funcionária da CIA, exactamente do departamento de armas de destruição maciça da agência.
Essa boa nova, ainda desconhecida do público, e que, aliás, o público não deveria conhecer, caiu como sopa no mel neoconista. Configurou-se logo a hipóteses de, com uma cajadada mediática, se poderem eliminar dois males, evitando o ridículo geral, derivado do crédito firme na mentirola italiana, exposta ao público e descredibilizadora da missão humanitária de salvação do Iraque das mãos do tirano, encetada pelos neoconistas.
Acusariam a CIA de incompetência e ainda expunham as bocas de Joseph Wilson ao descrédito, por ser desinformador e traidor da confiança da Administração americana.
Para tal, precisavam de expor a ligação pessoal de Wilson, à alta funcionária dos serviços secretos, Valerie Plame.
Como fazê-lo, incorrendo na prática de um crime federal e ainda assim, safando-se das consequências? O problema, similar a todos os governos que laboram na dissimulação mentirosa da propaganda, mereceu altas reuniões conspirativas.
Descobriram afinal, a solução mais à mão: a fuga de informação subtil, para a imprensa, táctica com provas dadas, pelo menos desde Watergate.
A revelação sobre a identidade de um agente da CIA é crime, em função de uma lei que todos acham razoável, incluindo os jornalistas.
A revelação, feita por um jornalista, está protegida pela imunidade inerente à qualidade profissional, garantida pela primeira Emenda constitucional americana, mantendo secretas as fontes de informação.
Assim, no interior da própria Administração, começou a operação de spin, fornecendo-se aos jornalistas, informação para o descrédito de Wilson e de caminho, conduzindo directamente à revelação da identidade de Valerie Plame, como agente da CIA, cometendo-se desse modo, eventualmente, um crime. Quem foi o garganta funda da Administração que revelou o nome ao público, em primeira mão, cometendo assim o crime federal?
Ainda não se sabe oficialmente e com a certeza processual, sendo matéria de especulação e investigação aturada, mas pelo que se adivinha, sem destino grandioso.
Porém, no que tange ao essencial, vários jornalistas souberam do assunto, por conversas com diversos responsáveis da Administração e publicaram notícias, sobre o caso. A identidade de Valerie Plame, foi publicamente exposta, em artigo de imprensa, assinado em primeira mão por Robert Novak, jornalista da CNN, ligando-a ao assunto das investigações do marido Joseph Wilson, sobre a existência da conexão nigeriana, com o Iraque, para permitir a este país e ao regime de Saddam, a obtenção de armas de destruição maciça.

As notícias reveladoras da ligação, escandalosa e devidamente empoladas para o efeito, levaram directamente à constituição de uma comissão de inquérito federal, dirigida por Patrick Fitzgerald, um Procurador Especial, Federal ( como nos casos Kennedy, Nixon e Clinton ).

A imprensa e media em geral, incluindo pela primeira vez, de modo saliente, os blogs, têm acompanhado o caso com inusitado interesse e relevância discursiva, interrogando-se sobre a legitimidade de investigação, a notícias derivadas de fugas de informação que esclarecem o público, sobre segredos mal guardados pela Administração.

O assunto, aliás, revela muitas semelhanças com o que por cá se passa, com a violação sistemática de segredo de justiça pela imprensa.
A diferença de vulto, no entanto reside em que por cá, e ao contrário de lá, a investigação dos jornalistas e a sua perseguição criminal, são consideradas, em si mesmas, as actividades celeradas. Como exemplo, pode apontar-se o caso recentes do Envelope 9, e o da investigação alargada aos jornalistas, por violação de segredo de justiça. Serão estes, valores em troca ou em mudança?

A tarefa do Procurador Especial, assim, ficou orientada para a análise de documentos e a audição dos mensageiros e para as perguntas fatídicas: quem teria soprado o nome da agente da CIA, Valerie Plame, ao público? Alguns ( o do Washington Post e o da NBC), bufaram logo: I.Lewis Scooter Libby tinha falado sobre o assunto, informaram pressurosamente e com a anuência do próprio, confiado em que a confissão das conversas, limitaria os danos e seria insuficiente para estabelecer conexões exclusivas e fatais.

Ficou então a saber-se que Scooter Libby, mais uns tantos da Administração ( Richard Armitage, subsecretário de Estado e Karl Rove, conselheiro presidencial) tinham falado com repórteres, sobre o assunto, logo em Julho de 2003. Ficou ainda a saber-se, através de notícias de jornais e admissão pelo próprio, que um dos reveladores iniciais, fora o próprio subsecretário de estado, Richard Armitage, que seria a fonte de Robert Novak, (CNN) para o artigo de 14 de Julho de 2003, onde o nome de Valerie Plame, apareceu citado pela primeira vez. Novak citou outro responsável, especulando-se o nome de Karl Rove, muito badalado neste affair. De certo, oficial e assente, ainda pouco se sabe e de qualquer modo, ainda insuficiente para acusações públicas, do Procurador Especial.

Apesar disso, nem todos os repórteres intimados falaram. Judith Miller do New York Times, recusou, não delatando logo e invocando a 1ª Emenda. Foi presa por desobediência. Só falou, quando o próprio Lewis Scooter Libby a autorizou a contar as conversas mantidas( tal como fizera com os demais jornalistas), e a jornalista confirmou então a indicação do nome da agente da CIA, como tendo sido revelado pelo mesmo, ainda com gaffe na escrita( Flame em vez de Plame).
Ainda assim, o Procurador Especial, apenas conseguiu acusar Scooter Libby. Porquê, pergunta-se?
Ele mesmo o disse: não foi acusado pela autoria da fuga de informação, a qual ainda hoje permanece por esclarecer oficialmente, mas por causa da obstrução à justiça e perjúrio, que será responsabilidade única, de Scooter Libby.
Segundo o Procurador Especial que ouviu Richard Armitage e outros, não foi possível apanhar mais peixe graúdo na rede da investigação em Grande Júri, devido aos actos de obstrução de justiça e mentirolas de I.Lewis Scooter Libby.
Eventualmente e parece que todos o reconhecem -a própria revista Time, de 22 de Fevereiro em artigo de opinião de Michael Kinsley, pede a sua libertação - a actuação de Libby destinou-se a protecção dos seus superiores. Quem? Cheney, Rove e Armitage, pelo menos.

E assim a acusação, com base nos depoimentos e documentação apreendida nos departamentos de Estgado, foi apenas de perjúrio e obstrução à justiça.
O Procurador Especial Fitzgerald, foi considerado herói nacional pelo trabalho desenvolvido e a revista Vanity Fair, consagrou-lhe um artigo de fundo, laudatório em toda a extensão, à semelhança dos que por cá se lêem sobre Maria José, a Morgado.

Lewis Scooter Libby
, foi julgado pelo tribunal de júri, à americana e agora considerado culpado por quatro das cinco acusações, arriscando seriamente, passar os próximos anos na cadeia, se não vier a ser indultado por intervenção directa do presidente. 30 anos de cadeia, é o limite e em Junho se saberá. Mas há precedentes, como se sabe já, desde o escândalo Irão-Contras, com Oliver North, do tempo de Bush pai- e os anos ficarão reduzidos a angústias que nem serão muitas, a não ser com as contas dos advogados da ordem das centenas de milhar de dólares e os pedidos de indemnização faraónicos que já chovem, por conta de Valerie Plame e marido.

Que dizer destes acontecimentos americanos, comparando com o que por cá se passa, em termos de aplicação de justiça?
Sinceramente, pouco ou nada, porque o sistema de justiça americano, nestes casos, não tem comparação com o nosso.
Mas, ainda assim, arrisca-se um pequeno termo de comparação: o que se tem passado nas margens do processo Casa Pia, onde se envolveram pessoal e gravemente indivíduos que estão activamente na política.
Um inquérito parlamentar a esses factos, não adianta nada de novo para averiguar verdades incómodas. Já sabemos como funcionam e o último que decorre, tem uma novidade gravíssima:
O grupo parlamentar do PS, partido suspeitíssimo de estar interessado em descredibilizar a investigação criminal efectuada nesse processo, decidiu ontem, ouvir em declarações um dos responsáveis pela investigação do Ministério Público , acerca de um fait-divers do processo: o caso das disquetes do envelope 9, com o intuito declarado de entalar o ex-procurador geral da República.
A aposta é elevada e o risco enorme. Se o inquérito parlamentar se revelar o falhanço que se adivinha, podem ter a certeza que…tudo ficará na mesma. COmo ficaram os anteriores inquéritos da Eurominas e outros que tal.
Mesmo que a jogada de audição do investigador do processo, para o inquirir acerca do modo como efectuou a investigação criminal, signifique descaradamente uma interferência do poder legislativo, na competência da entidade que detém o exclusivo da acção penal em Portugal, obrigando-o a quebrar um dever de reserva, os deputados do PS e do BE, acham que não e que se impõe tal audição, sobre um assunto mediático. O que virá a seguir? Um inquérito parlamentatr ao caso do Apito Dourado, para saber quem escutou 15 mil horas de conversas telefónicas e o que lá se ouviu?

Não será isto a suprema sem-vergonha de um regime podre e já sem princípios?
Veremos qual será o resultado final.

O postal foi editado, revisto e aumentado, em 10.3.2007.

Publicado por josé 18:26:00  

2 Comments:

  1. Carlos Medina Ribeiro said...
    Por cá, a impunidade atinge tais níveis que há réus que se dão ao luxo de dizer que «a acusação é verdadeira, "mas..."» - jogando com esse "mas", com descaramento q.b.

    No «Público» de ontem e no «Destak» de hoje pode ler-se:
    ________

    Verdades inconvenientes
    ou
    A lógica da "batáctica"

    EM TEMPOS QUE JÁ LÁ VÃO, apanhava-se, a toda a hora, com as chamadas "anedotas de elefantes" - que eram, quase sempre, sob a forma de adivinha. Na mais famosa de todas, questionava-se «como é que um elefante passa despercebido na Baixa», a que correspondia a resposta «no meio de uma manada». E foi pensando, porventura, que essa graçola ainda tem apreciadores, que Fátima Felgueiras escolheu, como argumento para se defender das acusações do "saco azul", a afirmação de que todos os partidos os têm.

    Pelos vistos, essa táctica de "desconversar em vez de negar as acusações" entrou na moda, pois também surge no processo do "Apito Dourado": neste, há quem argumente que as escutas telefónicas, apesar de verídicas, foram ilegais; e quem, embora reconhecendo que houve corrupção, garanta que a lei que a pune é inconstitucional. Aguardemos, então, os resultados de tão subtil táctica. Se tiver sucesso, só nos resta comentar - tendo em conta as relações de toda essa gente com o mundo da bola: «QUE GRANDE DEFESA!»
    josé said...
    Obrigado. O português precisa de arranjo e vou arranjar...mas acho que qualquer jornalista empenhado poderia escrever o mesmo, ainda melhor. Afinal, as informações estão quase todas na net e só me socorri da Time que guardo e do LaRepubblica de quarta, 8 de Março, para "inspiração" plagiadora.
    Tenho pena que os jornalistas portugueses plagiem tão mal.

    Conheço um jornalista em Portugal que escreve, como um pequeno deus caseiro, maravilhas em Português.
    Chama-se Rui Pelejão, não sei onde pára e a última vez que o li foi no Pastilhas do MEC.

    Por mim, tento imitar um estilo, sem conseguir melhor do que isso que ficou. O estilo é o de P.J. O´ROurke ou o de Phillipe Manoeuvre. Se me perguntassem como gostaria de escrever, responderia imediatamente: como Tom Wolfe. Ou então, até poderia ser como Michael Crichton.

    Mas há mais. Um dia destes faço o catálogo.

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