O regresso de Ana Teresa Pereira


Naquela noite sonhou que tinha voltado à torre.

A sua torre.

Não sabia localizá-la. No fim de um caminho entre rochas escarpadas (onde cresciam flores brancas), atrás de uma povoação fantasma varrida pelo vento, ou vagamente confundida com uma casa em ruínas onde entrava o nevoeiro.

Estivera lá muitas vezes, ao longo dos anos, sempre com aquela sensação de reconhecimento, de "voltar". Mas nunca trouxera a sua imagem para a vida acordada, era um local nocturno, de um outro mundo.

A torre era de pedra, com aberturas irregulares por onde se viam as rochas e o mar. Tinha a vaga ideia de já ter descido as escadas, de ter mergulhado em pântanos e silêncio.

Mas era a primeira vez que se lembrava da torre ao despertar... O mesmo não acontecera com a livraria, a livraria escura que fiava numa cave em ruas que existiam de facto, e onde encontrara livros impossíveis de Richmal Crompton, John Dikinson Carr e mais recentemente de Iris Murdoch.

Abriu os olhos e percebeu que o sol entrava pela janela. Talvez por isso, não esquecera nada; agora tinha sempre estes sonhos estranhos ao amanhecer.

Era como se a casa fosse um poço, um espaço onde só se podia cair. Começara a vaguear mais fundo dentro de si mesmo, tão fundo como nunca estivera, e as imagens misturavam-se na superfície com os primeiros raios de Sol.

Tudo faria sentido se tivesse vivido naquele lugar em criança. Então seria uma história, poderia fantasiar que o menino que percorrera os quartos escuros sonhava dentro dele.
Mas nunca estivera lá, antes aquele dia de Outono em que parara o automóvel junto ao portão de madeira e olhara com encantamento a velha casa de pedra, quase submersa no jardim imenso, inimaginável.

Algumas vezes na vida sentira que estava num lugar que existia dentro de si mesmo. Numa praça de Florença, numa catedral em Roma, numa casa de campo de uma novela de Henry James, na casa de praia dos livros de Iris Murdoch.

E agora estava a acontecer outra vez. Aquele local era familiar porque existia também dentro de si. Como a livraria dos sonhos. Ou como (só pensaria nisso mais tarde) a torre de pedra.
Um parente de que nem se lembrava deixara-lhe aquela quinta. E de alguma forma isso estava certo.

Abriu os olhos e por segundos teve uma sensação de irrealidade. No umbral da porta que dava para o jardim (as cortinas de veludo azul eram como uma moldura) estava a mulher mais bonita que vira na sua vida.

O perfume e a luminosidade do jardim confundiam-se com ela. E tudo na sala, incluindo ele próprio, se tornara quase escuro, sombrio. E tinham ficado na casa.
Tom escolhera um quarto nas traseiras, suficientemente amplo para amontoar no chão algumas centenas de livros.

Passava os dias na biblioteca, afundado na leitura. Via Marisa de passagem, algo parecido com uma estrela que desaparecia de um instante para o outro.
Mais ou menos duas semanas depois de se ter instalado tinham começado os sonhos.
E naquele amanhecer estivera na torre.

A torre de pedra, as aberturas irregulares, o mar lá em baixo, a espuma branca, os rochedos.

E num recanto escuro, a figura de Marisa. Não distinguia os seus traços mas sabia que era ela, ninguém podia ter aquela sombra tão delgada, ninguém podia ter aquela voz quente, funda.

E lembrava-se das palavras. Uma a uma. Eram ternas e eram uma ameaça.

«um dia, quando chegares a casa, encontrar-me-ás pendurada do tecto como um morcego, com os olhos fechados, os braços cruzados sobre o peito, adormecida».

«O anjo adormecido», in A Noite Mais Escura da Alma
Ana Teresa Pereira

Publicado por André 16:18:00  

0 Comments:

Post a Comment